sexta-feira, 20 de novembro de 2009

MARX, O DIABO E A CRISE DO CAPITALISMO


Armando Avena*
Karl Marx acordou aborrecido. O inferno estava quentíssimo e Lúcifer teimava em acordá-lo para contar as novidades do mundo dos homens. Marx já não se interessava muito por esse mundo e não podia conter a indignação quando lembrava as atrocidades que foram feitas em nome do socialismo. Graças ao diabo, vivia no primeiro círculo do inferno, e não precisava dividir as chamas com genocidas como Stalin, Ceausescu e Pol Pot, que mataram milhões de pessoas em seu nome, e habitavam os círculos mais profundos da casa de Hades.

Após tantos contratempos, ainda acreditava no fim do capitalismo, mas tantas vezes ouviu seus seguidores anunciarem equivocadamente a dêblacle final do sistema que o ceticismo dominou seu espírito. O capitalismo era uma espécie de Fênix que ressurgia das próprias cinzas, e cada crise que parecia trombetear seu extermínio terminava por fortalecê-lo. Já não se entusiasmava com os espasmos cíclicos do sistema e, a essa altura, preferia arder em paz no inferno do que sair por aí anunciando a crise definitiva que nunca chegava. Por isso, aborreceu-se com a insistência com que o diabo o chamava, mas como não podia mandá-lo para o inferno, afinal ele já estava lá, resolveu ver o que desejava o famigerado Senhor das Trevas. Ao vê-lo com as narinas fumegantes, indagou:

– O que você quer Belzebu?

– Marx, suas previsões estão se confirmando. O capitalismo está ruindo.

– Já não creio nessa lorota. – retrucou Marx, sarcástico. – É apenas mais uma crise cíclica.

– Mas o que está acontecendo é grave. Começou com uma crise imobiliária, mas contaminou o sistema bancário e agora ameaça a economia real. O que houve com o capitalismo, Marx?

– É o velho ciclo de auge e depressão. O mundo passou por um período longo de crescimento e o superaquecimento da economia dos EUA, que representa quase 30% da economia do planeta, além do convívio prolongado com baixas taxas de juros, gerou uma exuberância irracional no sistema. Havia excessiva liquidez no mercado e isso estimulou o endividamento. Houve uma expansão exagerada do mercado imobiliário americano, pois havia tanto dinheiro sobrando que os bancos passaram a financiar credores sem capacidade de pagamento, clientes que não eram prime, mas subprime. As dividas desses clientes foram securitizadas, e essa garantia permitia que esses títulos fossem negociados no mundo inteiro. As empresas começaram a fazer seguros com as hipotecas desses clientes duvidosos e assim os riscos foram terciarizados, de forma que os bancos não precisavam se preocupar com a qualidade dos clientes a quem estavam emprestando. Os títulos foram negociados nos EUA e no resto do mundo, fazendo o risco espalhar-se no mercado. Deu-se a coisa mais típica do capitalismo moderno: alavancagem financeira com títulos podres.

- Ora, ora, Marx, eu sou apenas um diabo, não entendo esse economês todo. O que eu quero saber é se o capitalismo vai acabar.

- Lúcifer, meu amigo, desde que meu vizinho de inferno, esse empedernido Lord Keynes, fez uma teoria dizendo que o Estado podia intervir na economia, o capitalismo deixou de correr perigo. Esse maldito inglês propôs que o Estado usasse todos os instrumentos disponíveis para resolver as crises do capitalismo. Esse Keynes dizia que os gastos do governo eram o antídoto para a recessão, e que, na crise, era necessário o governo consumir e investir para dinamizar a economia. Pois bem, quando aquele presidente americano imbecil, o Bush, e seus asseclas neoliberais deixaram o banco Lemon Brothers quebrar, ele pretendiam contradizer Keynes e dizer ao mundo que quem mandava no sistema era o mercado. Quebraram a cara. O mercado desabou, os bancos começaram a quebrar, um atrás do outro, e eles tiveram de colocar o rabinho entre as pernas e aceitar as propostas do Banco Central e do governo da Inglaterra e estatizar parcialmente os bancos, injetando bilhões de dólares na economia para evitar a quebradeira geral e outros tantos para garantir o crédito.

- E de onde veio esse dinheiro todo?

- Dos contribuintes, meu bravo capeta. Foi com o dinheiro deles que se evitou que o capitalismo quebrasse. Os governos injetaram bilhões diretamente e em forma de crédito na economia e estatizaram os bancos, mas essa estatização é mentirosa , quando a coisa acalmar tudo voltará às mãos do setor privado. Em poucas palavras: eles socializaram os prejuízos causados pela especulação financeira e pela ganância dos especuladores. O mais incrível é que a sociedade não só permitiu que o governo fizesse isso como aplaudiu a incitativa. Foi o contribuinte que bancou a farra das hipotecas e dos banqueiros. No fundo, é Keynes novamente: o Estado salvando o capitalismo e os capitalistas.

- Não é à toa que esse Lord Keynes está no inferno.

- O pior é que ele desvirtuou o próprio capitalismo. Você não percebe a ironia, Belzebu. O capitalismo, cuja essência é a liberdade econômica e a privatização, valeu-se da estatização do sistema para evitar a crise. Isso já não é mais capitalismo, é um hibrido, uma Hidra de Lerna que perde uma cabeça para ver crescer duas em seu lugar.

- Mas, Marx, se os governos não fizessem isso haveria uma corrida aos bancos? O sistema financeiro internacional quebraria e o capitalismo iria ruir.

- E era exatamente isso que eu queria. Mas hoje eu sei que será impossível. O capitalismo é um monstro camaleônico, que toma a forma do bicho que deseja destruí-lo. Sabe, Lúcifer, eu fiquei impressionado quando vi a face de Che Guevara estampada no biquíni daquela linda brasileira, Gisele Bundchen, acho que é esse o nome dela. Ora, a foto de Guevarra, que queria exportar o socialismo, tornou-se o souvenir mais vendido no mundo. Percebi então que é essa a mágica do capitalismo, ele é flexível, camaleônico, se não pode destruir um símbolo, apropria-se dele e o transforma em mercadoria. E quando vem uma crise como essa agora, o poderoso mercado também flexibiliza, baixa cabeça e, para não sucumbir, submete-se ao Estado. O sistema deixa-se estatizar momentaneamente para logo depois tudo voltar ao que era antes.

- O que você que dizer com isso, Marx?

- Que o capitalismo não vai acabar tão cedo, meu Príncipe das Trevas. Ele é uma hidra de muitas cabeças. A crise pode cortar algumas delas, mas logo nascerão outras e, mesmo que algumas coisas mudem, tudo continuará como está.
*Economista, jornalísta e escritor. Armando Avena é prof. da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Católica de Salvador.
Fonte: (www.bahiaeconomica.com.br
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