É PAU, É PEDRA, É O FIM
DE UM CAMINHO
Um dos estilos mais típicos da oratória antiga eram os chamados
discursos epidícticos, nos quais o tribuno apenas enfatizava aquilo que
as plateias esperavam ouvir. Tratava-se, principalmente, de elogiar o
elogiável, exaltando as qualidades de um homem ilustre recém-falecido,
enaltecendo uma cidade diante de seus habitantes, louvando qualidades
abstratas, como a bondade e a justiça, e assim por diante.
Com o tempo, os grandes tribunos perceberam que não havia verdadeiro
mérito nisso. Dedicaram-se, então, a buscar a perfeição da oratória na
prática oposta, a de elogiar o feio, o ridículo ou até mesmo o
abominável.
Luciano e Leão Baptista Alberto descreveram as virtudes da mosca.
Polícrates louvou os ratos. Luíz Uviquílio enalteceu os gafanhotos.
Clitério escolheu o caruncho. Favônio, as febres. Betubo, os mosquitos.
Miguel Psellos, as pulgas. Sinésio, a careca. E André Amônio fez um
antológico discurso em que descreveu as belezas do nada.
Tivesse eu esse talento, faria o elogio de Dilma Rousseff. Seria o elogio da nulidade.
Nunca se viu coisa
igual: um governo que toma posse e não começa, que já no primeiro
trimestre se desmoraliza e se arrasta de derrota em derrota, e cuja
maior esperança é conseguir agonizar em praça pública por quatro anos,
sem nada propor ao país. Não dará certo, é claro, embora ainda não
saibamos como.
Há poucos meses, falar em crise era coisa de gente ranzinza. Hoje, é
chover no molhado. Mas acho que as pessoas ainda não perceberam o
tamanho e a complexidade da confusão em que nos metemos. Estamos diante
de diversas crises, superpostas e combinadas, que apenas se iniciam. É
coisa de grandes proporções. Dadas as características da sociedade
brasileira atual, talvez venha a ser a mais grave crise da nossa
história.
Sua dimensão evidente é o esgotamento da política econômica que
prevaleceu nos doze últimos anos. Desde 2003 ouvimos a promessa de
combinar desenvolvimento e justiça social, tendo o mercado interno, pela
primeira vez, como o principal elemento dinâmico.
Depositários da memória desse meritório projeto, longamente amadurecido,
os governos do Partido dos Trabalhadores anunciaram a novidade, mas não
souberam levá-la adiante: abandonaram a agenda de reformas estruturais;
descuidaram da expansão dos bens e serviços de uso coletivo; não
conseguiram coordenar e executar os investimentos necessários em
infraestrutura; praticamente só criaram empregos em setores de baixa
produtividade; assistiram, sem reagir, à reprimarização da nossa pauta
de exportações e à desindustrialização do país, fenômenos associados a
uma inserção declinante no sistema internacional. Em vez de tratar
desses assuntos difíceis – e decisivos –, a política econômica
concentrou-se, cada vez mais, em artifícios voltados para aquecer a
demanda no curto prazo.
A promessa de um ciclo longo de desenvolvimento centrado na expansão do mercado interno degenerou em uma bolha de consumo.
Essa experimentação
econômica acabou. Como o peso das tentativas de distribuição de renda
foi jogado sobre os gastos fiscais do Estado, o qual não se libertou da
condição de refém da acumulação rentista, as finanças públicas foram
para o buraco. E, como o sistema produtivo brasileiro não acompanhou a
demanda – em grande parte, por uma política cambial irresponsável –,
nossas contas externas também desandaram.
Com a economia estagnada, temos um déficit público de mais de 6% do
Produto Interno Bruto e outro déficit de mais de 4% do PIB nas contas
externas. Isso quer dizer que Estado e sociedade estão em uma espiral de
endividamento, com o país parado. Foi preciso pisar fundo no freio. O
crescimento, que era baixo nos últimos anos, será negativo em 2015,
enquanto 2016 já parece longo prazo. Estamos entrando em uma recessão
cuja duração e profundidade ainda desconhecemos.
Isso foi escondido até as eleições. Logo em seguida, o mesmo governo
que, até ontem, se legitimava por meio da apologia do consumo passou a
adotar – sem aviso, sem negociações e sem explicações – um conjunto de
políticas que visam, antes de tudo, contrair bruscamente esse mesmo
consumo. Não podia dar certo.
A segunda dimensão
da crise, menos visível, é o esgotamento simultâneo dos quatro
mecanismos usados na última década para promover alguma distribuição de
renda.
Os aumentos reais do salário mínimo, iniciados em 1994 e mantidos sem
interrupção até 2014, ficarão doravante comprometidos pelo pífio
desempenho do PIB e pelo aperto nas contas da Previdência Social.
As políticas de transferência de renda, centradas no programa Bolsa
Família, atingiram seu teto de expansão, tanto em número de famílias
beneficiadas quanto no valor dos benefícios. A precária situação fiscal
do Estado não permite novos aumentos significativos.
Dado o nível de endividamento da população, o crédito se contrai pela primeira vez em doze anos.
O aumento da formalização do trabalho arrefece e dá lugar a um novo ciclo de desemprego ascendente, principalmente na indústria.
O distributivismo sem reformas atingiu seu limite. A recessão se
encarregará de anular boa parte dos ganhos que o povo brasileiro obteve
na última década, o que prenuncia uma crise social importante. As
populações que aumentaram sua capacidade de consumo e viram nisso uma
expressão acabada de ascensão terão muitos motivos para reagir às perdas
que se avizinham. Não temos instituições que acolham e canalizem sua
provável rebeldia, que ainda não se expressou (elas não estiveram
significativamente presentes nas manifestações dos dias 13 e 15 de
março).
A terceira dimensão
da crise é especificamente política. O loteamento do Estado, com o
consequente rebaixamento do Congresso Nacional e da própria ideia de
política, tornou-se o principal mecanismo de construção da chamada
governabilidade. Levado ao extremo, ele eliminou a capacidade de esse
mesmo Estado conduzir empreendimentos complexos e de longa maturação,
que são os mais importantes. A política afastou-se das grandes questões
nacionais.
A governabilidade assim obtida no curto prazo é a contraface de uma
tendência à ingovernabilidade no longo prazo, pelo acúmulo de desafios
relevantes não enfrentados.
Como escrevi aqui em 2013, o longo prazo chegou: as disfuncionalidades
desse tipo de política já superam, de longe, qualquer contribuição que
ela possa nos dar. Não obstante, ela prossegue, pois o sistema funciona
no piloto automático. Construímos um Estado ágil para premiar amigos e
punir adversários, mas inoperante para liderar um projeto nacional.
Nosso sistema político gira em falso. Governa a si mesmo, em vez de
governar o Brasil. Presos nessa armadilha, tornamo-nos uma sociedade de
vontade fraca, que não consegue canalizar sua energia para o que
verdadeiramente importa. Sociedades assim perdem a capacidade de se
desenvolver, ainda mais em um contexto internacional, como o atual, em
que as disputas se acirram.
A esse quadro preocupante somam-se três crises específicas, mas muito relevantes.
A crise no abastecimento de água, principalmente em São Paulo, onde está
nossa maior metrópole, nossa agricultura mais forte e nossa maior
concentração industrial.
A crise do setor elétrico, que já se expressa na disparada das tarifas e
em apagões sucessivos, e provavelmente exigirá novo racionamento de
energia ao longo do ano.
A crise da Petrobras e da engenharia pesada, que – somadas à sua extensa
cadeia de fornecedores – representam em torno de 10% do PIB. Ainda
desconhecemos os efeitos da contração desses investimentos sobre o
conjunto da indústria e o impacto da perda patrimonial desses setores
sobre a higidez do sistema financeiro, dos fundos de pensão e de outros
investidores institucionais, como o próprio Fundo de Amparo ao
Trabalhador. Esse impacto especificamente financeiro, que permanece
incubado e despercebido, poderá vir a causar, adiante, um dramático
agravamento da crise que está começando.
Esgotaram-se,
simultaneamente, a política econômica, a política social e a maneira de
fazer política adotadas pelos governos do PT. A rigor, não estamos
assistindo apenas ao fim de um ciclo, mas de dois. No olhar de curto
prazo, desfaz-se a hegemonia que prevaleceu na política brasileira na
última década e, com ela, começa a se desfazer a polarização do país em
dois blocos, um liderado pelo PT, outro pelo PSDB, com o PMDB como força
pendular.
Em um olhar mais abrangente, estendido no tempo, também chega ao fim o
impulso ideológico e institucional que a sociedade brasileira ganhou na
década de 80. A maioria do nosso povo já não se reconhece nos partidos,
nas organizações da sociedade civil e nos movimentos sociais nascidos ou
reestruturados no fim do regime militar, há mais de trinta anos.
A sociedade mudou, e eles envelheceram.
Um ciclo longo da política brasileira está terminando. Entramos em voo
cego. Será preciso reconstruir referências, o que não é fácil.
Especialista em
fazer o marketing do otimismo sem projeto, Lula foi uma espécie de Eike
Batista da política. Também encantou multidões e, com isso, arrastou
grande parte da esquerda. Entre os atores políticos, ela será a maior
perdedora.
Ao longo da história, a esquerda resistiu a diversas tentativas de
aniquilação, vindas de fora para dentro. Ao aderir ao lulismo – que
abria aos seus quadros generosas oportunidades de ascensão social,
afluência material e poder –, ela se deixou sucumbir por um processo
inédito, lento e profundamente corrosivo: a dissolução de dentro para
fora, pela perda de seus valores fundamentais.
Embora abrigado em legendas de esquerda, o lulismo sempre foi, na
essência, um movimento conservador, que reduziu a ideia de justiça
social apenas à dimensão do consumo individual e à conquista de votos a
ela associada. O fortalecimento da coisa pública e das instituições
republicanas, o desenvolvimento moral, intelectual e cultural das
pessoas e o aperfeiçoamento do ambiente social em que se dá a
convivência humana – que são essenciais em qualquer projeto progressista
– sempre estiveram fora de seu horizonte ideológico.
“Compre mais e vote em mim”, foi tudo o que Lula disse, durante anos, ao
povo brasileiro. Na política, ele reorganizou e fortaleceu o antigo
Centrão, a articulação do fisiologismo e das oligarquias, que agora
controla de novo, com folga, o Congresso Nacional e ameaça engolir de
vez todo o poder, num retrocesso que chegou a ser inimaginável depois do
fim do regime militar.
Não me surpreende que o lulismo, ao fim e ao cabo, nos deixe como legado
uma sociedade mais conservadora do que a que tínhamos doze anos atrás.
Ao contrário, parece-me ser o desdobramento natural do que ele é. Ao
mesmo tempo, nunca antes tivemos massas humanas tão grandes, tão
concentradas e tão carentes de participação, consciência, organização e
representação. Essa despolitização ampla, geral e irrestrita é o pior
legado da maneira como o PT conduziu a nação na última década. Nesse
contexto, em uma situação de crise aguda, tudo pode surgir.
Tempo de crise,
tempo de cacofonia. Quem não tem o que propor logo propõe criar novas
regras e fazer novas leis, um debate vazio. Regras e leis são sempre
burladas, quando não temos capacidade de definir nem mesmo meia dúzia de
objetivos comuns que constituam um consenso básico em torno de si.
Mais do que de novas regras, precisamos de novos fins e valores. Isso,
as instituições políticas que aí estão, maculadas pelo peso abusivo do
poder econômico e pela disseminação do cinismo, não podem nos dar. O
conteúdo da política é que precisa mudar.
Nossos políticos tornaram-se camaleões que a cada quatro anos se
esforçam para se adaptar ao que a sociedade é, ou parece ser, conforme
lhes ensinam as minuciosas pesquisas de opinião que encomendam. Sempre
preocupados com os interesses da hora, são incapazes de despertar
qualidades novas que estejam latentes.
O futuro que resulta do somatório de suas pequenas ações, fabricadas com
sucessivas costuras de curto prazo, é apenas o prolongamento do
presente. Não contém o caráter novo de um verdadeiro futuro. Ficamos
andando em círculos, sem sair do lugar.
Precisamos encontrar gente nova, organizada de maneira nova, que, em vez
de tentar se adaptar ao que a sociedade é, ou parece ser, aceite correr
os riscos de anunciar o que ela pode vir a ser, para impulsioná-la.
É de uma discussão de projeto que se
trata, e ela exige que tenhamos capacidade de recolocar questões
fundamentais. Esse pode ser o melhor legado da crise.
Precisamos abandonar ninharias, como a polarização PT versus PSDB,
nos libertar de preconceitos, como os que nos mantêm presos às
organizações da esquerda tradicional, e revisitar fundamentos, buscando
atualizar uma ideia de Brasil, agora em um cenário de grandes
dificuldades.
O tempo está contra nós. Não virá nenhum golpe de Estado, pois ninguém
minimamente relevante o deseja, a começar pelas Forças Armadas. Mas, se
não reagirmos, poderemos nos tornar um Estado falido e uma nação
inviável. Nem a nulidade de Dilma Rousseff, nem a esperteza de Lula, nem
o oportunismo dos nossos políticos atuais – feitas algumas exceções de
praxe – nos salvarão.
O que escrevi aqui, e muito mais, eu digo há muitos anos à esquerda. Só
colhi isolamento e difamação. Não fico feliz em constatar que tinha
razão. É pau, é pedra, é o fim de um caminho. Mãos à obra.
Fonte: Revista Piaui
Por César Benjamin
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