O GOLPE BRANCO DO
PARLAMENTARISMO DE FATO
Antes da crise que está nos jornais, há a Crise da Política (assim
com P maiúsculo para significar a grande política, a política maior, a
política geral), pano de fundo de tudo o mais - das crises econômicas,
até -, mãe das crises institucionais, que levam à ingovernabilidade. Num
determinado momento, navegando por mares que se autocomunicam, as crises também se autocontaminam de tal sorte que passam a constituir um só fenômeno.
Penso que entre o céu e a terra há algo além do reajuste-não reajuste fiscal e as sondagens de opinião.
Sob a crise geral da política, sob a crise da democracia
representativa, sob a crise de valores que contamina as instituições,
vivemos a fadiga do ‘presidencialismo de coalizão’, que já nos deu o que
tinha de dar e, convenhamos, nos deu muito pouco de bom.
Ele próprio é
fruto (mas também agente) da degeneração dos partidos, transformados em
verdadeiros valhacoutos nos quais impera o desamor à causa pública,
respeitadas as ressalvas que o protocolo recomenda, mas que o
eleitorado, todavia, parece sequer notar, de tão sutis. A uni-los, e
fazendo de cada um espécie de um mesmo gênero, a ausência de projeto
programático, esmagado pela sobrecarga de interesses pessoais que não
conhece limites. É a busca do poder pelo poder, sem qualquer compromisso
público, vício que se agrava eleição após eleição, porque se há
partidos que disputam eleições, há aqueles que só cuidam de formar
maiorias parlamentares, catados seus integrantes segundo as regras de um
verdadeiro mercado persa, e finalmente unificada em face do poder de
chantagem adquirido, chantagem, tanto mais forte quanto o presidente
mais carece de apoio no Congresso. Em muitos casos é essa maioria que
impõe o caráter do governo, obrigado, assim, a governar em desacordo com
a vontade eleitoral.
Tal sistema oferece ao presidente apenas duas alternativas – compor
ou cair--, pois é impossível governar sem maioria. Essa é a lição de
todos os governos desde o regime de 1946, cujos exemplos mais
paradigmáticos são oferecidos pelas tragédias políticas de Jânio Quadros
e Fernando Collor.
Esse presidencialismo caboclo tem origem em uma das muitas distorções
de nosso regime político, o descompasso entre a vontade que elege o
chefe do Executivo e aquela outra que compõe as casas legislativas,
pondo muitas vezes governadores e presidentes da República na
contingência de, por meio de coalizões partidárias sem argamassa
política ou mesmo ética, compor maiorias artificiais e caras para poder
governar. Isso, ou renunciar à governança, embora mantendo-se à frente
do governo, com a caneta impotente.
Esse é o jogo, grave para a economia, pernicioso para a política e
perigoso para a democracia, vivido presentemente pelo País. Ouso afirmar
que não se trata, mais, tão-só, de desencontro fisiológico e político
de partidos na base governista, frágil politicamente (conquanto cara) e
tão numerosa quanto infiel. Não se trata mesmo de distonia entre
Congresso e Executivo, mas, clara como a luz do sol, assistimos à
disputa por um poder que não prevê co-propriedade. Corrompendo as fontes
do presidencialismo constitucional, o Congresso intenta também fazer-se
governante, articula a pauta político-administrativa do Executivo e
interfere na organização do Estado. Mas é co-governante com o escopo de
dificultar a ação do poder central legítimo, enquanto, desleixado de
suas funções constitucionais precípuas, enseja ao STF a permanência em
sua faina de legislador ordinário, rompendo assim com os limites de sua
competência e transformando em mera mixórdia a separação e independência
dos poderes.
Essas considerações dizem-me que vivemos em um ‘parlamentarismo de
fato’, como aliás, relembro, era o parlamentarismo consensual do
Império, sem previsão constitucional.
Há entre ambos, porém, uma distância qualitativa. A legitimar o
primeiro havia o consenso das forças políticas e os dois Bragança e a
aprovação do que era nossa sociedade de então.
No caso presente, a consolidação desse ‘parlamentarismo’ de fancaria é
o resultado de um ‘golpe de Estado branco’ no qual os presidentes das
duas casas legislativas se auto-outorgaram o posto e as funções de
primeiro-ministro, que exercem em condomínio, contra o recentíssimo
pronunciamento da soberania popular que por maioria absoluta reelegeu a
presidente Dilma, segundo as regras do presidencialismo. Dessa
distorção, aliás, aproveitam-se as forças atrasadas do Congresso para
impor ao governo e à sociedade a agenda conservadora derrotada nas
eleições de 2014, hegemonizada pelo fundamentalismo evangélico mais
retrógrado (consabidamente na contra-mão da alma nacional): redução da
maioridade penal, aumento do limite das penas, criminalização do aborto,
discriminação homofóbica. O principal partido da coalizão parlamentar,
que ocupa ministérios e preside as duas casas do Congresso e no entanto
atua em aliança com a oposição, anuncia suas ‘teses de governo’: a
cretinice da independência formal do Banco Central, combatida na
campanha eleitoral pela presidente eleita; revisão das regras do pré-sal
que presentemente protegem a Petrobras e o interesse da indústria
nacional; revisão do Mercosul, deslocamento para o Norte da vitoriosa
política Sul-Sul com a renúncia de nosso papel hoje proeminente no
Hemisfério; admissibilidade da Alca, esvaziamento dos Brics; aprovação
de aumento de despesas que anulam os efeitos dos cortes do governo;
interferência na escolha dos ministros do STF (prioridade constitucional
do Presidente da República com referendo do Senado); imposição de prazo
para a presidente negociar as dívidas dos Estados etc.
A tal distorção chamo de parlamentarização de fato (na qual apostam
cabeças coroadas do PMDB). Pode ser uma alternativa institucional à
crise submeter a presidente, mas pode ser, também, a mudança de
qualidade, para pior, da crise política, contaminando a
institucionalidade.
O parlamentarismo no Brasil republicano – derrotado esmagadoramente
em dois plebiscitos, jamais foi um sistema de governo, mas, sempre, uma
tentativa de golpe contra a manifestação presidencialista e soberana do
eleitorado. Medida tradicionalmente brandida pela velha UDN, toda vez
que perdia uma eleição presidencial, e perdia todas. Em 1961, em
praticamente uma só noite, um Congresso sem legitimidade, mas acuado
pelas Forças Armadas, transformou o presidencialismo em parlamentarismo.
Era a consagração do golpe mediado por Tancredo Neves e San Tiago
Dantas com os chefes militares insubordinados, para assegurar a posse de
João Goulart. Um plebiscito, anos mais tarde, faria a República voltar
para o leito natural do presidencialismo. Aliás, a tradição golpista do
Congresso vem de antes. Na madrugada de 11 de novembro de 1955, para
assegurar a posse de Juscelino Kubitschek, de novo estimulado em seus
brios pelas baionetas das forças armadas (agora legalistas) sem a mínima
base constitucional, declarou incapazes de exercer a presidência,
seguidamente, o presidente Café Filho e o vice, Carlos Luz, para dar
posse ao presidente do Senado Federal, o sr. Nereu Ramos.
Na velha tradição golpista do velho udenismo, o presidente do PPS,
dizem os jornais, já articula uma emenda constitucional visando à
implantação do parlamentarismo, passado o atual quadriênio. Jejuno em
direito constitucional, ele se esquece de que o plebiscito de 1993
transformou o presidencialismo em causa pétrea, sob a atual
Constituição.
Se conseguimos, com tanto sacrifício passado, o que se pode chamar de
consolidação da democracia brasileira, devemos ter cuidado e caminhar
devagar com o andor, que o santo pode ser de barro.
Esta crise, deste governo, pode repetir-se com força igual ou ainda
maior em futuras administrações, e não será desatada com uma simples
reforma eleitoral, cuja necessidade não está em discussão. Quando
tratarmos de uma reforma política, que importa em reforma
constitucional, é imperioso considerar como necessária antiga proposta
de Leonel Brizola de as eleições presidenciais se realizarem no mesmo
ano, como agora, e como tem sido desde sempre, mas doravante observando
intervalo de um mês entre uma (a eleição do presidente) e outra (a
eleição dos deputados e senadores), de sorte que o eleitorado seja
chamado a escolher o Congresso já conhecendo o novo presidente da
República e suas propostas.
Fonte: CartaCapital
Por Roberto Amaral
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