DOMENICO LOSURDO: REVOLUCIONÁRIO
E MARXISTA CRIADOR
E MARXISTA CRIADOR
O filósofo e historiador italiano Domenico Losurdo esteve em Portugal em Junho a convite da revista web odiario.info para apresentar os seus livros «Stalin, história crítica de uma lenda negra» e «Fuga da História». Falou no dia 15 de Junho em Serpa na biblioteca municipal e no dia 16 em Lisboa, no ISCTE. Não obstante ser um intelectual de prestígio mundial, autor de uma vasta obra editada em muitos países, incluindo a China, a imprensa dita de referência, a televisão e a rádio ignoraram a sua presença em Portugal.
Losurdo, que é professor catedrático da Universidade de Urbino, uma das mais antigas da Itália, dedicou atenção especial em ambas as conferências a desmontar a falsificação da História montada no Ocidente para satanizar Stalin.
O comunismo – afirmou – não pode estar morto como sustentam os sovietólogos das grandes universidades europeias e americanas, porque ainda sequer nasceu.
Losurdo lembrou que a vitória da Revolução de Outubro de 1917 criou condições para a destruição do capitalismo na Rússia, permitindo que o Partido Bolchevique iniciasse naquele país a construção do socialismo.
Losurdo definiu essa experiência, realizada num contexto extremamente desfavorável – guerra civil, agressão das potências da Entente, atraso económico do país, invasão nazi, etc. –, como um dos maiores acontecimentos da História. Em sete décadas a União Soviética foi cenário de prodigiosas conquistas que transformaram uma sociedade semi-feudal na segunda potência industrial do mundo.
A implantação na Europa Oriental de regimes inspirados pelo socialismo real soviético não teria sido possível sem a mudança radical na relação de forças posterior ao fim da II Guerra Mundial. O mesmo ocorreu com a vitória da Revolução Chinesa em l949, com o triunfo da revolução cubana em 1959 e a rapidez do processo de descolonização na África e na Ásia.
Losurdo qualificou de tragédia para a humanidade a reimplantação do capitalismo na Rússia após a desagregação da União Soviética.
Essa conclusão não é para ele incompatível com a convicção de que o fim da URSS foi o desfecho de uma soma de factores inseparáveis da incapacidade da concretização do projecto socialista concebido por Lenine, com base na teoria de Marx.
Domenico Losurdo é sempre criativo e polémico na boa acepção da palavra.
Não conheço trabalho comparável pela originalidade e rigor ao que desenvolveu em livros e ensaios para demonstrar o fracasso da transição na URSS do capitalismo para o socialismo.
Domenico cultiva a arte difícil de imprimir força de evidência ao óbvio, como dizia Albert Camus.
Lenine tinha consciência de que a tomada do poder na Rússia fora uma tarefa muito mais fácil do que o desafio da construção do socialismo.
O partido não dispunha de uma teoria para a transição do capitalismo para o socialismo. E pagou um preço altíssimo por essa carência. Ela está na origem dos conflitos devastadores que Losurdo define como «as três guerras civis» na sociedade a que ele chama «post capitalista».
Essa simples expressão tornou o autor de «Fuga da História» alvo de muitas críticas. Domenico poderia ter utilizado a expressão «pré socialista». Mas não o fez porque o socialismo real se distanciou para ele do socialismo, tal como o concebe na fidelidade ao projecto de Marx. Sem a participação criadora e permanente do povo, o socialismo autêntico não pode – sublinhou – concretizar-se.
Não cabe nestas breves linhas recordar as situações históricas que na Rússia arruinada e famélica, hostilizada pelo imperialismo, tornaram inevitáveis decisões em defesa da Revolução – desde o comunismo de guerra à NEP – que conduziram a uma gradual redução do papel dos sovietes, a um apagamento dos sindicatos (e portanto da participação popular) e a uma hipertrofia do partido. São conhecidas as consequências dessas opções tomadas ainda durante a vida de Lenine.
A satanização de Stalin
Domenico Losurdo lembrou em Serpa e Lisboa que a falsificação da História surgiu a muitos historiadores ocidentais como uma necessidade inseparável do combate à «ameaça comunista».
E a partir dos anos 30 a demonização de Stalin foi a grande arma utilizada nas campanhas anticomunistas. Morto o dirigente que sucedeu a Lenine como secretário-geral do partido, o Relatório Secreto de Khruschov ao XX Congresso do PCUS representou uma preciosa ajuda aos sovietólogos das grandes universidades europeias e estadounidenses que faziam da denúncia do «estalinismo» instrumento fundamental da luta contra o «comunismo», para muitos irmão gémeo ao fascismo.
Um dos grandes méritos de Domenico Losurdo, como historiador e filósofo, é precisamente o desmascaramento no seu livro «Stalin, estória e crítica de uma lenda negra» da satanização de Stalin, construída a partir de mentiras e calúnias que falsificam a História.
A grande maioria dos livros – e são centenas – sobre Stalin deformam o homem e a sua época. Os autores assumem posições extremadas. Ou fazem a apologia da obra e do estadista ou o satanizam. Para uns é um herói quase perfeito; para outros um criminoso, um ser demoníaco.
Domenico Losurdo lembrou que o caso de Stalin não é inédito. A burguesia sente a necessidade de diabolizar e criminalizar os grandes revolucionários.
O episódio trouxe-me à memória o ódio da burguesia francesa a Maximilien de Robespierre. Nos anos posteriores ao Termidor, as calúnias contra o grande revolucionário da Convenção foram tão irracionais que, para lhe destruir a imagem, chegaram ao absurdo demencial de afirmar que pretendia casar com uma princesa, filha de Luís XVI. Ainda hoje, transcorridos mais de dois séculos, não há em Paris uma rua com o nome de Robespierre.
Quando Losurdo publicou o seu livro sobre Stalin afirmei então num artigo, e repito, que não conheço sobre o tema outro ensaio tão importante e lúcido como o seu.
Numa abordagem inicial, ele chama a atenção para o primarismo e falta de imaginação das campanhas que visam destruir a imagem de Stalin, comparando-o a Hitler. É absurdo negar qualquer mérito e apresentar como um ditador feroz e irresponsável um homem que durante três décadas exerceu um enorme poder num país que derrotou a Alemanha nazi e se transformou na segunda potência mundial.
Para desmontar e por vezes ridicularizar a argumentação dos autores que satanizam Stalin, Losurdo recorre exclusivamente a fontes ocidentais, a destacados historiadores, filósofos, sociólogos, economistas, políticos, militares, amplamente conhecidos pelas suas posições anticomunistas. Cita concretamente opiniões de Roosevelt, De Gaulle, Benes, Hannah Arendt, Eisenhower, De Gasperi, Montgommery, Golda Meyer, John Foster Dulle, elogiosas para Stalin, como homem, estadista e estratega.
Domenico, ao tomar a decisão de desmontar a lenda negra que envolve Stalin, sabia que desencadearia contra ele uma montanha de críticas.
Mas assumiu o desafio.
Nessa opção aparece o seu retrato. O filósofo é um humanista de uma espécie quase em via de extinção.
Comunista, é hoje um revolucionário sem partido; não encontra na Itália uma organização dita comunista com a qual possa identificar-se.
No seu caminhar pelo mundo trágico deste início do século XXI, em que o imperialismo empurra a humanidade para o abismo, Domenico Losurdo tem motivos para sentir que justificou a sua passagem pela vida. Construiu uma obra que vai permanecer. Não é mais um divulgador do marxismo entre muitos. É um criador. Ao aplicar a doutrina e o método do mestre alemão ao tempo presente, ajudou algumas gerações a compreender a necessidade da luta para transformar um mundo envolvente apodrecido.
No seu caminhar pelo mundo trágico deste início do século XXI, em que o imperialismo empurra a humanidade para o abismo, Domenico Losurdo tem motivos para sentir que justificou a sua passagem pela vida. Construiu uma obra que vai permanecer. Não é mais um divulgador do marxismo entre muitos. É um criador. Ao aplicar a doutrina e o método do mestre alemão ao tempo presente, ajudou algumas gerações a compreender a necessidade da luta para transformar um mundo envolvente apodrecido.
Tal como os materialistas gregos, não desconhece que o objectivo supremo do homem na aventura da vida é a procura da felicidade possível. E sabe também que em poucas épocas terá sido tão difícil como hoje perseguir essa meta. Não é de estranhar que o filósofo, nessa ânsia de compreender para ensinar, tenha escrito sobre autores tão diferentes como Nietzsche, Hegel, Marx e Lenine.
Mas Domenico tem os pés bem fincados na terra. A teoria (sem a qual não há revolução que aponte caminhos novos) e a prática são complementares. Consciente dessa interacção, o historiador está, como intelectual revolucionário, permanentemente envolvido na solidariedade com as grandes causas da humanidade e na luta dos povos contra o imperialismo. Os seus artigos correm mundo na crítica às guerras de agressão imperiais contra os povos da Palestina, do Iraque, do Afeganistão, da Líbia e outros, na denúncia da participação do golpe dos EUA nas Honduras, na solidariedade com as FARC colombianas e com o povo iraniano, no iluminar da monstruosa engrenagem da desinformação montada por um sistema mediático perverso.
É reconfortante que neste mundo em crise de civilização haja pensadores revolucionários como Domenico Losurdo. Vai completar 70 anos e preparam-lhe homenagens em diferentes países.
Fonte: Jornal Avante
Enviado por Antonio Capistrano
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