terça-feira, 20 de julho de 2010

POR FABIO FARIAS


A MARIA DE TODOS OS HOMENS



“As mulheres de Maria Boa tem uma predileção pelo grego, em detrimento do latim. Usam a palavra “gala”, e não esperma. Gala é leite em grego.” Luís da Câmara Cascudo
 
No final da Rua Padre Pinto, centro de Natal. Ali, em um local escondido, havia um belo casarão. Arborizado, florido, discreto. O visitante, ao entrar, via uma casa recheada de móveis vermelhos, estilo clássico. Um imenso salão com damas dançando tango. Tivesse sorte, talvez ouviria a voz de Odair José soando na vitrola e dependendo da época que fosse, os acordes do piano de Paulo Lira. Veria, caminhando por entre os cômodos, algumas belas mulheres, talvez as mais bonitas que já tivesse visto. Todas simpáticas e à sua disposição. O álcool não faltaria. A cerveja, sempre gelada, estaria distante apenas de um pedido.

O bordel de Maria Boa era assim. Um espaço luxuoso, bonito e caro. Um casarão que certamente foi palco de reuniões políticas importantes. Nele pisaram grandes nomes da cultura, da economia e da política norte-riograndense. Um cabaré – para evitar eufemismos – cuja dona era uma mítica mulher conhecida nos círculos da alta sociedade da pacata cidade de Natal apenas por Maria Boa. Boa, porque, segundo dizem e evitando o trocadilho vulgar, doava dinheiro para a família investir em estudos, cultivava paixões por livros e filmes e, o principal, portava-se como uma verdadeira dama – educadíssima.

É irresistível, aqui, deixar de usar a célebre frase de Nelson Rodrigues: “A mulher ideal deve ser dama na mesa e puta na cama”. Isso porque todos os depoimentos e textos sobre  uma das personagens mais conhecidas da cidade retratavam a boa educação que ela tinha. Aliás, não seria exagero imaginar que Rodrigues, antes de escrever essa frase, tivesse visitado o lendário bordel da Maria Boa e talvez experimentado alguma de suas meninas. O local era um ponto turístico, uma referência na cidade.

A fama da casa e o prestígio que ele tinha entre a alta sociedade potiguar fez de Maria Boa uma lenda. O nome, na verdade, é o pseudônimo para Maria Oliveira de Barros, uma paraibana de Campina Grande, nascida sob o signo de câncer em um 24 de junho de 1920. De acordo com artigo de Deífilo Gurgel publicado no livro 400 nomes de Natal, ela desembarcou na cidade depois de envolver-se em problema na Paraíba. Conta Deífilo que ela teria sofrido uma ameaça de morte e, assim, viu-se obrigada a chegar em Natal em plena década de 40 para salvar a própria carne. Mas esse é apenas uma versão da história. Certo é que ela chegou numa época de guerra, dos soldados norte-americanos e dos grandes prostíbulos.

Não se sabe ao certo qual foi a data de fundação do seu famoso cabaré. Foi em um daqueles anos da década de 40, onde podia-se facilmente encontrar os cadetes da aeronáutica andando nas ruas de Natal. A menina, campinense, no auge dos seus vinte anos, devia ter feito a cabeça de muito homem. Outro artigo, agora do historiador Manoel de Oliveira Cavalcanti Neto, conta que a dita-cuja teve seu nome gravado em um caça B-25 e sua imagem pintada na lataria de um deles. A mais importante máquina de guerra da época. Uma  foto de Maria Boa do jeito que nasceu – nua – também fez fama entre os soldados e virou troféu de competição dos cadetes.

A menina não era só corpo bonito e simpatia. Ela se interessava por livros e, claro, cinema. A Natal da década de 40 e 50 era influenciada pelas películas Hollywood – algumas trazidas pelo próprio exército norte-americano. A jovem, que encantava os homens da época, também dedicava horas à leitura e foi fortemente influenciada pela moda e estética dos filmes. Deífilo diz que ela chegou a formar uma biblioteca em casa e que, à despeito de sua falta de formação, era de uma educação de dar inveja a qualquer outra dama da cidade. “Ela tinha um carisma, conseguia despertar a admiração das pessoas. Ela era uma pessoa séria”, lembra-se o folclorista.

Deífilo que, vindo do interior, na mesma década que Boa desembarcou em Natal, não freqüentou a casa por motivos religiosos. “Eu era tímido, muito ligado a religião, tinha isso na cabeça”, afirma. A referência que o bordel de Maria Boa teve nos anos subseqüentes foi crescente. Da casa que recebia os cadetes da aeronáutica ela logo começou a receber grandes figuras da política potiguar e formou um forte círculo de influência. Isso, segundo Deífilo, certamente foi um dos responsáveis pela manutenção, durante pelo menos 40 anos, do prostíbulo.

A fofoca, na pequena cidade de Natal, espalhava-se como fogo. E não raro, chegava nela. Temida pelas mulheres da época, não faltou gente para dizer que Maria Boa tinha um caso com fulano de tal. O mais famoso e duradouro, ainda segundo o Deífilo, teria sido com um grande cardiologista. O folclorista não revelou o nome do sortudo, mas conta que o caso alimentou muita picuinha. Waldick Soriano, cantor ilustre, registra-se boatos e incertezas de que ele, em Natal para um show, teria dado uma esticadinha em Maria Boa e cantado para as suas meninas.

Meninas, essas que fizeram sucesso e foram notícia em veículos de todo o Brasil por conta de uma ação ajuizada pelo advogado Paulo Lopo Saraiva. O motivo: o pedido de aposentadoria e assistência para elas depois do fim do cabaré. Lopo, então professor de direito constitucional na UFRN, usou o cabaré como tema de pesquisa. Queria investigar se a prostituição era crime, função social, ou mal social. Descobriu que as meninas se prostítuiam por ser a única forma possível de sobrevivência: ou seja, uma função social. Com isso, decidiu ajuizar no Tribunal Regional do Trabalho uma ação, perdeu, apelou para instâncias superiores. Até hoje o caso está parado. Tramita no Supremo Tribunal Federal.

A importância de tão distinto cabaré, pontua Deífilo Gurgel, é que bem antes de se falar em “turismo sexual” ele já era uma referência turística na cidade. Era comum o viajante que chegava a Natal ser convidado a conhecer as belas moças de Maria Boa. Era gente, lógico, com boas condições financeiras. Também não é difícil crer na constatação, quase que clichê na cidade, que as meninas de Boa foram as responsáveis pela iniciação sexual da maior parte dos jovens de classe alta de Natal. Os mais pobres que queriam satisfazer suas ânsias sexuais tinham que descer para Ribeira, onde as os prostíbulos eram mais baratos. “Ela era muito bem relacionada. Era uma prostituta de luxo”, afirma o folclorista.

O gosto que Maria Boa tinha por literatura e pela cultura também tinha explicação. Antes de dedicar-se a mais antiga das profissões, Maria de Oliveira Bastos era tipografista. Daí, especula Deífilo, ela teria tirado o gosto pelos livros. Depois da sua morte, ocorrida num 22 de julho de 1997, aos 77 anos vítima de AVC, Boa foi tema de dissertações na UFRN sobre a sua influência na identidade cultural da cidade. Foi classificada por estudiosos como um “mito” que povoava a representação sexual do imaginário masculino da época.

Em artigo, José Correia Torres Neto lembra essas dissertações acadêmicas a dama de Natal. Em uma deles, ele cita Elíade Pimentel e o texto “E o Carnaval Ficou Para a Memória”. A dissertação informa que Maria Boa, num carnaval na década de 50, teria desfilado em carros conversíveis junto de Antônio Farache em plena Avenida Rio Branco. Outro aspecto relacionado a ela era a sua preocupação com higiene e saúde. “Ela era muito zelosa, cuidava muito da saúde”, ressalta Deífilo.

O cinema também fez referência a nobre dama natalense e seu famoso bordel. Não se sabe ainda se Maria Boa esteve viva para assistir. Mas “For All – O Trampolim da Vitória“, lançado em 1997 – mesmo ano de sua morte – fez uma bela referência à anti-dama, ícone natalense. Uma das prostitutas do longa-metragem tinha o nome de “Maria Buena”, inspirada nas histórias ouvidas pelos diretores Luiz Carlos Lacerda e Buza Ferraz, antes de gravarem a película. Certamente, pelo gosto que ela tinha pela sétima arte, talvez Maria Boa ficasse feliz em ser lembrada.


 A menina que sonhava em se casar

Foi de trem, em um 18 de julho de 1942, que Maria Oliveira Barros desembarcou em Natal. Ela vinha de João Pessoa, depois de ter morado em Taperoá e em Campina Grande. Era uma menina de 22 anos de idade e que, nos últimos seis anos de sua vida, havia passado por dificuldades em sua terra natal, na Paraíba. Ao chegar na cidade, hospedou-se na pousada Estrela e depois no Arpeje, antes de conseguir um financiamento para o aluguel da casa – que serviu como o seu bordel por mais de 40 anos. Única mulher em uma família com nove irmãos, a menina Maria veio fugida para Natal.

Segundo relatos de pessoas próximas a Maria Boa, anos antes, quando terminou o quinto ano do colégio, tornou-se tipografista. Aos 16, seduzida pelos encantos de um rapaz campinense, fugiu de casa e da criação severa do pai, Pedro Ferreira Barros. Ele, ao descobrir a fuga, mandou procurá-los e exigiu que ambos se cassassem. O rapaz não quis, abandonou-a. A vergonha para a família tradicional e conservadora em que vivia foi tão grande que ela acabou expulsa de casa. Sozinha, tentou voltar ao emprego anterior. Não quiseram. Os amigos largaram-na. Ela foi rejeitada pela sociedade.

Sozinha, sem família e nem dinheiro para comprar sequer um pente – ela tinha longos cabelos morenos, segundo disseram – Maria Barros conheceu a prostituição nas ruas de Campina Grande. A vergonha que tinha da situação dela, frente aos seus pais, fez com que, ao juntar alguns trocados, ela se mudasse pela primeira vez. Foi para Taperoá, onde passou pouco tempo, antes de seguir para João Pessoa. Na capital paraibana, apaixonou-se novamente. Dessa vez, por um dos familiares do escritor José Lins do Rêgo. Chegou a morar pouco tempo com a família Lins do Rego até, novamente, pela condição social que vinha precisou sair e procurar outro lugar para se manter. Mudou-se para Natal porque não queria ser prostituta em João Pessoa.

No Rio Grande do Norte contou com amigos para ajudá-la a montar o bordel. O nome, Maria Boa, vinha da Paraíba, de uma brincadeira de colégio. Em uma festa religiosa em Campina Grande, ela trabalhou junto com seu pai em uma barraca. Ao ajudar alguns clientes, começaram a chama-la de Boa, pela sua presteza e bondade. O pai não gostou do apelido e exigiu que a menina não deixasse chamá-la assim. Apelido, quando apelidado não gosta, pega. Foi o que aconteceu. Conta-se que ela chegou a ir para as vias de fato com engraçadinhos que, na época, chamavam-na de Maria Boa. O problema é que o nome ficou tão forte que foi difícil, para ela, livrar-se da alcunha. Mesmo depois de velha, dizem, não gostava quando chamavam-na assim.

Maria de Oliveira Barros vestia-se com roupas costurados a mão, adorava usar saltos altos, perfumes – tinha uma coleção deles – ir ao cinema e copiar os modelos das atrizes hollywoodianas. Ela tinha uma biblioteca, onde podiam ser encontradas obras completas de Machado de Assis, José de Alencar e do escritor gaúcho Érico Veríssimo. Dizia aos familiares que eles não podiam morrer sem ler o livro Olhai dos Lírios do Campo, obra de Verissimo de 1936 sobre relações e tensões de um casal. Era capaz de discutir com firmeza qualquer assunto. Não voltou para escola, nem se dedicou a uma carreira acadêmica, por medo do preconceito e da rejeição.

Quando já morava em Natal e possuía uma boa condição de vida, no final da década de 40, recebeu uma carta do pai. Muito doente, Pedro pedia desculpas pelo excesso de rigor com a filha. Queria o perdão dela, antes de morrer. Maria recebeu a carta e se emocionou. Ela, então, voltou para Campina Grande e se reconciliou com os pais. A mãe, Deolina de Oliveira Barros alegrou-se. Dizia que ela acendia, todas as noites, uma vela para a filha. Foi um dos dias mais felizes da vida de Maria de Oliveira Barros.

De bem com a família, não demorou para trazê-los todos, seus pais e seus irmãos, para Natal. Alugou inicialmente uma casa no bairro do Alecrim e, depois, comprou outra na Rua Pedro Pinto, próximo ao bordel. Tratava a sua profissão com muita discrição, não comentava esse assunto com os familiares. Não dava entrevistas. A despeito do luxo com que era levado, o trabalho sempre foi uma espécie de ferida para ela e a família. Ela tinha ainda uma granja em São José do Mipibu onde, nos fins de semana, reunia os familiares para festas e churrascos.

Seu maior sonho – nunca realizado – foi o de casar. Sonhava com isso desde de menina e, talvez, nos meandros da sua profissão, acreditava que um dia algum homem a tiraria daquela situação e casaria com ela. Nos casamentos das sobrinhas, primas, parentes – fazia questão de pagar tudo. Desde o vestido, até a cerimônia e as festas. E, ao vê-las no altar, casando-se, desatava em um choro de alguém que nunca teve a oportunidade de ter algo semelhante. Dizem que era a que mais se emocionava em casamentos.

Maria não podia ter filhos. No início dos anos 40, engravidou e acabou sofrendo com um aborto natural. Ela ficou infértil. Mesmo assim, adotou duas crianças – um menino e uma menina. Pagou colégio particular para os dois filhos que adotou. O dinheiro que ganhava ia, também, para financiar os estudos das primas e sobrinhas. Fazia questão que todos tivessem uma formação diferente do que ela tinha.  Sempre, mantinha-se de forma discreta, recatada. Escondia o seu ganha pão. Sempre teve vergonha do personagem que representava. Por mais influente e histórica que ela chegou a ser.

Sofreu preconceitos. Já velhinha, depois que a sua casa fechou, a sombra da rejeição pairava na sua vida. Foi a um encontro da terceira idade e, nele, passou mal. Tinha medo quando, ao dizer de onde vinha e o que faz, do que fariam com ela. Saiu de repente, sem falar uma palavra, como ela sempre fazia. Maria era religiosa, freqüentava procissões. No tradicional beijo ao cristo na antiga catedral, na sexta-feira santa, esperava até a noite para fazer as suas preces a imagem. Ia quando já não tivesse quase ninguém. Tinha medo da reação das pessoas, da fama que ela tinha.

A vida foi difícil, mas ela sempre procurava motivos e razões para alegrar-se. Enchia sua granja de familiares nas datas comemorativas, tudo para ela era motivo de festa. Em 1994, sua mãe, Deolina Oliveira Barros – velhinha – morreu. Foi o início do fim do bordel de Maria Boa. Com a morte da genitora, ela passou a cuidar da casa da família até decidir vender as duas propriedades – a casa da mãe e o bordel – para a construtora Arnon. Mudou-se para Lagoa Nova onde viveu pouco tempo.

O tango era sua dança preferida. Dançava no grande salão no seu bordel, ao som dos grandes nomes do ritmo argentino. Sua importância na cidade foi reconhecida pelos militares. Em meados da década de 80, foi homenageada por coronéis da aeronáutica – aqueles que, nos anos 40, eram os cadetes que freqüentavam a sua casa. Até americanos vieram prestar-lhe homenagens. Na entrada do seu salão foi colocada uma placa em nome dos seus serviços prestados.

Entre histórias, lendas, conta-se que o suposto caso com o cardiologista famoso que Maria Boa teria tido seria com o doutor Hellen Costa. Os boatos não passavam de pura maledicência. Ele era apenas o médico dela, assim como foi médico de muitas outras famílias da cidade. Aliás, os namoros, sempre foram um mistério na cidade. Conta-se que ela teria tido um caso com um advogado, solteiro, por muitos anos. Mas isso, nem a família sabe contar.

Maria de Oliveira Barros tinha problemas cardíacos e, em 97, foi internada por complicações no órgão.  Ela foi submetida a uma cirurgia de alto risco. Sobreviveu. Mas, pouco tempo depois, ainda no hospital, teve um acidente vascular cerebral – fatal devido a seu frágil estado de saúde. A família chorou sua perda. No enterro, o caixão estava cheio de flores. Era uma das coisas que gostava: flores. Os jornais contaram a sua história em matérias que enchiam páginas. Aquele dia 22 ficou marcado. Natal perdia mais uma das suas personagens.

Fonte: Matéria publicada na Revista Salto Agulha 
 www.saltoagulha.com

Nenhum comentário :