SINISTRO E LAMENTÁVEL
O regime de economia de
mercado, com propriedade privada e separação entre os que vendem a sua
força de trabalho (trabalho “vivo”) aos que puderam acumular capital
(trabalho “morto” cristalizado), que lhe aumenta a produtividade, revela
historicamente flutuações cíclicas (de períodos e amplitudes
diferentes), produzidas pela variação do psiquismo que controla o
comportamento do setor privado. Elas são, normalmente, corrigidas por
uma manipulação da política econômica. É exatamente a confiança na
qualidade, agilidade e determinação com que se põe a trabalhar o governo
que determina o tempo de duração e a profundidade da flutuação.
O regime,
que chamamos de capitalismo, tem graves defeitos, mas de longe é o mais
amigável “descoberto” pelo homem até agora, para possibilitar um
razoável grau de liberdade de iniciativa individual com uma necessária
amplificação da igualdade de oportunidades, acompanhadas de relativa
eficiência produtiva. Não é uma coisa. É um processo evolutivo cujo
funcionamento depende da ação inteligente de um governo limitado
constitucionalmente, mas forte o suficiente para controlar a tendência
natural da formação do poder econômico e garantir o aperfeiçoamento do
sufrágio universal. É esse que, periodicamente, o submete ao
empoderamento crescente da sociedade. Governo controlado, mercados
regulados para estimular a competição, eleições livres e periódicas e
paciência para não se deixar enganar com curtos-circuitos, parece ser a
receita mínima para a construção da sociedade civilizada.
Há, entretanto, crises muito mais severas do que as
endógenas, isto é, produzidas pelo próprio comportamento cíclico, do
setor privado no capitalismo. São aquelas em que se mergulha quando o
próprio poder incumbente recusa as restrições físicas a que está sujeita
a economia e envereda, por miopia política, na feitiçaria econômica
portadora da “salvação nacional”. Quando a realidade escondida pelo
marketing mágico desce à terra, a confiança desaparece como por encanto.
A situação é ainda mais complicada quando, depois de uma eleição, se
desiludem os próprios eleitores. Foi o que aconteceu com a presidenta
Dilma. Ela foi eleita por pouco mais de um terço do eleitorado. Saiu
legitimamente eleita com o voto contrário de um pouco menos de dois
terços dos eleitores. Quando teve de enfrentar a verdade da tragédia
fiscal de 2014, não a reconheceu explicitamente, mas teve a coragem de
fazer uma apropriação da política econômica recomendada por seu
adversário. O resultado da manobra foi trágico. Não conseguiu recuperar
um voto dos que lhe haviam recusado o seu apoio e perdeu a confiança de
pouco menos de dois terços do seu eleitorado original. Tem hoje o apoio
de apenas 9% do eleitorado.
Há alguma coisa sinistra e injusta nesses
fatos. A aceleração do desequilíbrio geral em 2014 apenas antecipou o
desastre fiscal anunciado há 27 anos. Tem sido construído desde sempre
pelo laxismo com que se trata. 1. A preparação pouco crítica do Orçamento. 2.
As reservas de mercado para certos dispêndios com vinculações desde a
Constituição de 1988, elas mesmas resultado da falta de confiança da
sociedade nos administradores públicos. 3. A insistência em indexações. 4.
A facilidade com que se transformou dívida pública em “novos” recursos
etc. A grande verdade é que nem a Constituição nem os governos (nem
mesmo FHC, com o magnífico Plano Real e a excelente Lei de
Responsabilidade Fiscal) enfrentaram, com determinação e firmeza, os
problemas do longo prazo.
Não é preciso ser um economista
quântico para explicar o desastre que explodiu no colo da presidenta
Dilma, ainda que, recentemente, ela o tenha cultivado. Basta dizer que a
carga fiscal bruta cresceu de 28% do PIB em 1994, no governo Itamar,
quando o ministro fez um superávit primário de 5,6% e a relação dívida
bruta/PIB terminou em 40% do PIB, para 36,2% do PIB em 2014, quando foi
feito um déficit primário de 0,6% do PIB e a relação dívida bruta/PIB
atingiu 59% do PIB.
É preciso criar, de verdade, uma perspectiva crível de que
serão propostas e aprovadas medidas eficazes para mudar o rumo do
crescimento endógeno das despesas correntes. E isso só se fará com um
entendimento entre o governo e a sua bancada no Congresso.
Fonte: CartaCapital
Por Delfim Netto
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