JORNALISMO CEGO ÀS ARMADILHAS
DO DISCURSO OFICIAL
O que dizer de um noticiário que dá de manchete
exatamente o contrário da informação correta?
Foi o que ocorreu na cobertura da coletiva convocada
pelo governo, no fim da tarde de 13 de julho, para anunciar a proposta com a
qual pretende pôr fim à greve nas universidades e institutos federais de ensino,
que já dura quase dois meses. O noticiário revelou mais uma vez a submissão dos
jornalistas às fontes oficiais e a absoluta ausência de apuração própria
resultou em matérias que induzem a erro e anunciam o oposto do que a proposta
significa. Pois, em vez do alardeado reajuste, os professores terão perda
salarial, como se verá. E não apenas isso: o plano de carreira embute armadilhas
que, se confirmadas, significarão um retrocesso aos tempos da
ditadura.
Comecemos, porém, pelos aspectos mais evidentes da
cobertura.
Uma
primeira comparação entre as capas de dois dos principais jornais do país já
levaria a algum arquear de sobrancelhas: enquanto O
Globo
alardeia em manchete “Governo cede e aumenta professores em até 48%”, a
Folha
de
S.Paulo dá
chamada de capa com um índice menor: “Governo propõe reajuste de até 4 0% a
docentes das federais”. A discrepância se deve a opções diferentes entre os
jornais – o maior índice se refere a professores de institutos federais, e não
de universidades – e ao cuidado do jornal paulista em abater, do índice
anunciado, o reajuste de 4% já pago aos docentes de universidades no
contracheque de maio, retroativo a março, conforme acordo estabelecido no ano
anterior.
Ainda assim, ambos os jornais associam os números
exuberantes aos cargos de “maior titulação”, sem explicar que esse reajuste
máximo atinge apenas o restrito grupo de professores titulares. Entre doutores
com regime de dedicação exclusiva, tanto adjuntos quanto associados (e essa
diferença é relevante, porque os associados ganham substancialmente mais), o
índice fica na faixa dos 30%.
Fazendo
contas
Os jornais informam corretamente que os reajustes
serão concedidos parcialmente, ao longo dos próximos três anos. Porém, não
alertam para o essencial: que se trata de um percentual bruto, do qual,
obrigatoriamente, deveria ser descontada a previsão de inflação para o período.
E é aí que fica clara a primeira armadilha da proposta: não se trata de oferta
de reajuste, mas da imposição de uma redução salarial, na maioria dos
casos.
Há muitos anos, um renomado colunista de economia,
convidado a dar uma palestra para estudantes de jornalismo, surpreendeu – e
provavelmente decepcionou – a plateia ao responder à pergunta inevitável sobre a
preparação dos jovens para a profissão: não repetiu a ladainha de sempre sobre a
necessidade de leitura dos clássicos; disse que um bom jornalista precisa saber
fazer contas.
Essa tarefa, infelizmente, continua restrita aos
especialistas, como o professor Wagner Ferreira Santos, do Departamento de
Matemática da Universidade Federal de Sergipe. Ele fez essas contas e
disponibilizou o resultado num artigo em
que demonstra o engodo de se comparar valores em períodos distintos sem
considerar o índice de inflação correspondente, normalmente calculado pelo
IGP-M. Com base nesse índice, ele projeta uma inflação de 20% até 2015, de modo
que, assim (re)ajustada, a remuneração da grande maioria dos professores
(mestres e doutores com dedica ção exclusiva, que compõem a esmagadora maioria
nas universidades públicas) sofreria, de fato, perda de 0,4% a 11,9%, conforme a
titulação e o nível de carreira. Reajuste, a rigor, só para o professor titular
(5,9%, nesse percentual corrigido) e para o doutor adjunto nível 4 (1%), como se
pode conferir nas tabelas publicadas em seu artigo.
Para esclarecer, o professor argumenta, como se
passasse uma tarefa a seus alunos: “Como exercício de fixação, façamos cálculos
análogos com o salário mínimo, que é referência para a maioria da população
brasileira. Primeiro, mostre que os atuais R$ 622 são realmente maiores que os
R$ 510 de julho de 2010. Agora, a pergunta capciosa: se o governo anunciasse
hoje que o salário mínimo sofreria aumentos consecutivos em três parcelas,
chegando a R$ 700 em julho de 2015, você aceitaria?”.
Papagaios
das fontes
Os jornalistas presentes à coletiva não apenas não
fizeram essas contas como nem sequer indagaram por que a proposta anunciava
percentuais brutos e ignorava a inflação projetada para o período. Seria o
comportamento elementar de qualquer repórter minimamente qualificado e
interessado em trabalhar com dados corretos para divulgar informações
confiáveis. Ainda que se considere que o governo, espertamente, venha convocando
suas coletivas mais problemáticas para o fim da tarde, quando já não sobra muito
tempo para que os jornalistas analisem adequadamente os dados que precisam
divulgar “em tempo real”, nos sites e no noticiário radiofônico e televisivo.
Mesmo que não obtivessem a infor mação precisa, os repórteres poderiam
relativizar o que receberam, e não agir como porta-vozes oficiosos. Entretanto,
o máximo que fizeram foi ouvir “o outro lado”, o dos dirigentes sindicais, e
publicar breves declarações contrárias à proposta, mas tampouco
esclarecedoras.
À parte a questão do reajuste, que inevitavelmente
ganharia destaque no noticiário, há pelo menos outras duas armadilhas embutidas
na proposta do governo para o plano de carreira nas universidades federais, como
se pode constatar aqui, e
que sequer foram consideradas nas reportagens, como observou o professor Kleber
Mendonça, chefe do Departamento de Estudos de Mídia da UFF. Uma delas, que já
preocupava as entidades sindicais, é a de que todos os novos professores,
independentemente de sua titulação, ingressarão no nível mais bai xo da
carreira, como auxiliares, e não poderão mudar de classe enquanto estiverem em
estágio probatório (o período de três anos ao final do qual o profissional é
confirmado ou desligado do cargo). Na prática, isso significa que aquele que já
poderia estar recebendo como doutor ficará com remuneração inferior durante
esses três anos. Note-se que os concursos, há muitos anos, vêm sendo abertos
apenas para doutores, e só excepcionalmente para mestres. Ou seja, exige-se a
titulação, mas a remuneração correspondente pode esperar.
É possível perder essa oportunidade tão clara de
ironizar o discurso oficial de “valorização da carreira”?
Ironias
da história
Além disso, a planilha comparativa divulgada pelo governo mostra apenas os salários
atuais (antes e depois do reajuste de 4% já concedido no mês passado, e
retroativo a março) e os salários de 2015. O hiato de três anos até lá é
apagado, mais ou menos como em certos anúncios imobiliários em que algumas ruas
são suprimidas do mapa para dar a impressão de que o belo imóvel fica a poucas
quadras da praia ou de um maravilhoso bosque. Quem olha as planilhas fica com a
sensação de que os professores que recebem hoje, digamos, R$ 7.600 (adj unto 1,
doutor com dedicação exclusiva), passarão logo a ganhar R$ 10 mil, quando esta é
a remuneração para daqui a três anos.
A outra armadilha é que o governo propõe uma mudança
no sistema de promoção “nos termos das normas regulamentares a serem expedidas
pelo Ministério da Educação”. Portanto, propõe que os professores aceitem normas
que desconhecem.
É de fazer inveja a Maquiavel.
Mas essa armadilha representa algo ainda mais grave,
como lembrou o jornalista João Batista de Abreu, professor no Departamento de
Comunicação da UFF: significa um retorno aos tempos da ditadura militar, quando
não havia concursos públicos e a cada renovação de contrato os professores
tinham que apresentar o famigerado atestado ideológico, emitido pelo DOPS. Quem
estava respondendo a processo político não conseguia o documento. Depois da Lei
da Anistia, em 1979, essa exigência caiu, mas um chefe de Departamento que não
gostasse de determinado professor poderia simplesmente não renovar seu
contrato.
João Batista, na época em início de sua carreira
docente, recorda da greve iniciada em fins de 1980, que resultou na conquista
desse aspecto fundamental da autonomia universitária que é a definição do
sistema de ascensão funcional, através da constituição de comissões de
progressão docentes, responsáveis também pela regulamentação das atividades do
professor na instituição. “Se os critérios de progressão passarem a ser
definidos pelo MEC”, diz João Batista, “voltaremos 30 anos no
tempo”.
Seria uma dessas ironias da história se isso
acontecesse, tendo em vista o passado dos atuais governantes. Mas a tentação
autoritária é um fantasma sempre à espreita.
“Proposta
definitiva”
Apesar
de todas essas considerações, houve quem, embora com vasta experiência
profissional – como a colunista de política da Folha
Eliane Cantanhêde –, optasse por simplesmente reverberar as informações
oficiais, afirmando tratar-se de um a “proposta definitiva”, esse absurdo lógico
que ignora que uma proposta, por definição, é passível de negociação. Do
contrário, trata-se de decisão, deliberação, imposição ou qualquer outro
substantivo que expresse uma resolução unilateral de quem tem, ou pensa que tem,
poder para agir dessa forma.
Para concluir, as reportagens não deixaram de notar o
“impacto” de R$ 3,9 bilhões que essa “proposta definitiva” causará aos cofres
públicos, ignorando oportunamente o teor da Medida Provisória 559, já aprovada
pelo Congresso e dependendo apenas da sanção presidencial, segundo a qual o
governo concede às instituições particulares de ensino R$ 15 bilhões sob a forma
de renúncia fiscal.
Assim se faz o jornalismo de hoje, esse jornalismo
que certa vez chamei “de mãos limpas”, porque se contenta em ouvir um lado,
ouvir outro e lavar as mãos, deixando supostamente a conclusão para o público.
Não é difícil imaginar a que tipo de conclusão esse público poderá chegar,
privado que está das informações elementares a partir das quais poderia elaborar
algum raciocínio minimamente fundamentado. Não por acaso tantos colegas
professores receberam congratulações de parentes e amigos diante da expectativa
do magnífico reajuste. Precisaram pacientemente desfazer o equívoco, para
espanto de quem acreditou nos jornais.
*Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora
da Universidade Federal Fluminense
Fonte:
Observatório de
Imprensa
Enviado por João Marcelo Macedo
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