quarta-feira, 11 de novembro de 2015

O ERRO ESSENCIAL
Olhado de perto, todo regime político consiste em uma minoria bem organizada que controla uma maioria desorganizada e paciente, até o momento em que esta se sinta abusada. A história mostra que a tendência ao abuso e, com o tempo, ao abuso absoluto parece tão inevitável quanto a do aumento da entropia no mundo físico. A ampliação da democracia que empodera crescentemente os cidadãos pelo sufrágio cada vez mais universal foi a forma “civilizada” que os homens inventaram para substituir, com o menor atrito possível, a minoria bem organizada (o poder incumbente) em períodos bem definidos com eleições secretas, livres e abertas. Como os homens são suscetíveis à manipulação psicológica e à publicidade enganosa e, ainda, porque é impossível o controle da “vantagem inicial” do poder já instalado, a reeleição, quando admitida, deve ser muito bem regulada.

Hoje estamos diante de uma das graves consequências do nosso mecanismo de reeleição sem nenhum controle social. Ele permitiu ao governo utilizar todo o seu poder no cargo, sem que houvesse qualquer restrição ao seu objetivo: continuar governo! A campanha eleitoral foi terrível. Basta comparar os resultados de 2013 com os de 2014, quando os efeitos da política voluntarista que reduzia o crescimento já eram claramente visíveis. Em 2013, o PIB cresceu 2,7%. A taxa de inflação permaneceu constante (5,8%), e a dívida bruta/PIB caiu de 54,8% para 53,3%. Permaneciam as incertezas sobre o equilíbrio fiscal de longo prazo, mas é difícil dizer que a situação era ameaçadora. A aprovação do governo em dezembro de 2013 foi 78% (Datafolha de dezembro: 41% de ótimo ou bom e 37% de regular).

No primeiro trimestre de 2014 ainda tivemos um crescimento de 2,7%, mas os sinais já eram claros de que estávamos caminhando para um momento muito difícil que reduziria dramaticamente o ritmo de crescimento. De fato, o segundo trimestre revelou uma queda anual do PIB de 1,2% com relação ao seu homólogo de 2013 e foi murchando: menos 0,6% no terceiro trimestre e menos 0,2% no quarto. O crescimento anual foi praticamente nulo (0,1%). Era evidente, portanto, a partir de abril de 2014, quando se confirmou que o voluntarismo-ativo estava inibindo o investimento e atemorizando o setor privado, que o governo deveria alterar a política econômica e, ao mesmo tempo, controlar as despesas primárias, como, aliás, alertavam os economistas do próprio ministério da Fazenda.

No calor do processo eleitoral, o governo ignorou os fatos por temer que corrigi-los diminuiria as suas chances eleitorais. O resultado final foi decepcionante: ganhou a eleição, mas levou o Brasil à situação extrema de revelar o seu potencial desequilíbrio fiscal. O gráfico escancara a tragédia. Não deixa dúvida de que já não há qualquer solução possível a não ser o estabelecimento, na Constituição, de um mecanismo de cointegração quase automático entre a receita e as despesas primárias do governo, que gere um superávit primário para sustentar a relação dívida bruta/PIB em patamar adequado que torne possível, quando necessário, mitigar os efeitos do ciclo econômico com inteligente política fiscal.

A corajosa mudança da presidenta Dilma em dezembro de 2014 não produziu os efeitos necessários porque não enfrentou o verdadeiro problema: o desequilíbrio estrutural inscrito na Constituição de 1988. Ele não foi enfrentado, aliás, por nenhum dos quatro presidentes eleitos diretamente pelo voto popular. Quando estiveram no auge de seu prestígio (e todos, em algum momento, estiveram), sempre preferiram dissipar seu patrimônio no marketing fácil. Nem mesmo o necessário “ajuste fiscal” foi, de fato, levado a sério. E por uma razão simples: a presidenta não seguiu o conselho de Seneca, Initium salutis est notitia peccati, no meu pobre latim, “a salvação começa pelo reconhecimento dos pecados”..

Fonte: CartaCapital
Por Delfim Netto 

Nenhum comentário :