ACORDOS DE LENIÊNCIA
O Brasil
pretende, e é isso que estabelece a sua Constituição, ser uma
República. Nos termos mais pedestres possíveis, isso significa que todos
os seus habitantes estão de uma forma, como eleitores, ou de outra,
como candidatos em qualquer pleito eleitoral, envolvidos na vida pública
e todos, sem exceção, sujeitos à mesma lei. O poder incumbente
(o Poder Executivo independente, mas harmônico com o Legislativo) é
escolhido pelo voto, em períodos certos, por meio do sufrágio universal,
em eleições livres e honestas, onde cada partido tem a oportunidade de
apresentar o seu “programa social e econômico”. Ao vitorioso, com sua
base majoritária, cabe determinar a “política geral”. Ela deve ser
executada, entretanto, através de uma “administração pública” estável,
transparente, impessoal, selecionada pelo mérito, com uma módica
interferência direta do Executivo e de sua base majoritária. O princípio
agregador e fiscalizador da República é o Poder Judiciário. O Supremo Tribunal Federal é o “garante” de que somos todos “cidadãos” e não “súditos” da maioria eventual.
O grave problema que estamos vivendo é que os poderes
incumbentes eleitos nos últimos 20 anos foram, pouco a pouco, violando
essas regras. “Aparelharam” a administração com seus correligionários,
primeiro intelectuais, depois sindicalistas, que estão longe de
incorporar a competência e o etos da administração pública de Estado. Voltamos ao velho spoil system
dos anos 1950/1960, quando a administração pública era o “espólio de
guerra” do vencedor da eleição. Infelizmente, a administração de Estado
tem sido ignorada e depreciada, mas, felizmente, continuou a se
qualificar silenciosamente. Agora mesmo o Tribunal de Contas da União
revela o seu poder institucional de fiscalização. Seus técnicos vêm
sendo preparados há mais de uma geração, mas seus pareceres têm sido
sistematicamente ignorados pelo Congresso. Se apenas tivessem sido
ouvidos, provavelmente o excelente trabalho da Polícia Federal, do
Ministério Público e do Judiciário, e outras carreiras de Estado,
estaria sendo ocupado com a reparação de outros danos. A Operação Lava Jato será um ponto de inflexão na história do Brasil e deve prosseguir.
É preciso deixar claro que tentar
justificar “o afrouxamento da Operação Lava Jato” com o argumento de que
“ela reduzirá 1% do PIB” é ridículo no momento em que o PIB ameaça cair 2%
pela trapalhada fiscal. É equivalente a sugerir que não se deve tratar
um câncer com radioterapia porque ela produz um efeito colateral: a
queda dos cabelos... Sem que isso signifique a sugestão de relevar
qualquer dano ao patrimônio público, talvez seja a hora de pensar e
institucionalizar acordos de leniência que permitam uma “justiça
expedita”, como existe em outros países que enfrentaram, no passado, os
mesmos problemas. A indignação da sociedade com as revelações do
processo modificou para sempre as relações entre o poder público
demandante e o setor privado ofertante.
Os inconvenientes, as incertezas e o tempo que envolvem,
necessariamente, todo processo jurídico no Brasil, porque se quer fazer
“justiça” e não promover “vingança”, são mesmo prejudiciais às
atividades do setor de infraestrutura. É inegável, entretanto, que a sua
descontinuidade envolveria o abandono de um valor moral que, a longo
prazo, transcende a mera contabilidade do PIB. A solução, talvez, seja
uma aceleração dos processos judiciais sem prejuízo da “justiça”. O
Executivo deveria tomar a iniciativa de constituir uma task force
com a participação da Polícia Federal, do Ministério Público, do
Tribunal de Contas da União, órgão auxiliar do Legislativo, e do Poder
Judiciário para apresentar e aprovar no Congresso, sob regime de
urgência, uma instrumentação para produzir a “justiça expedita”, que,
sem poupar as pessoas físicas ou jurídicas, permita arbitrar eventuais
indenizações e chegar ao “ajuste de contas” definitivo. Isso permitiria
ao País conservar a inegável expertise acumulada nas empresas
envolvidas, corrigir suas estruturas internas para garantir a
transparência, recuperar o seu crédito e acelerar os investimentos tão
necessários para a recuperação do crescimento e do emprego.
Fonte: CartaCapital
Por Delfim Netto
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