terça-feira, 29 de maio de 2012

Por José Romero Araújo Cardoso*



BUCHADA DE BODE: SÍMBOLO DA CULINÁRIA

 POPULAR DO SEMIÁRIDO NORDESTINO


O interior nordestino foi colonizado com muita insistência, seguindo as pegadas do gado bovino que caracterizou a civilização do couro, denominação oportuna do historiador Capistrano de Abreu.

As charqueadas inicialmente visavam abastecer espaços privilegiados sob a ótica mercantil lusitana, como a área açucareira e depois mineira, não obstante a substituição da hinterlândia nordestina tempos depois pelo charque produzido nos pampas gaúchos, de melhor qualidade e de grande aceitação nas Minas Gerais.

Para garantir a subsistência da população do semiárido foram introduzidas raças caprinas extremamente rústicas que se adaptaram extraordinariamente às condições edafoclimáticas regionais.  O suporte forrageiro que se constituiu em desafio à sobrevivência das boiadas foi definido pelos caprinos e seus proprietários minguados de recursos econômicos, de posses, a partir do que a caatinga oferece em suas espécies vegetais miraculosamente adaptadas ao meio natural.

Impossibilitados de adquirir recursos protéicos em larga escala, as cozinheiras anônimas, diversas esposas dos caprinocultores nordestinos que garantiram e, nos dias atuais, ainda garantem considerável parcela do percentual estatístico referente à subsistência da civilização do couro, inovaram na delícia da culinária popular sertaneja, aproveitando partes menos nobres dos animais de pequeno porte abatidos.

A buchada de bode exemplifica a exponencial criatividade suscitada pela necessidade de sobrevivência da parcela mais humilde que desafia as intempéries da área semiárida povoada mais extensa do planeta.

A deliciosa iguaria surgida a partir da necessidade nutricional caracteriza-se pela mistura de vísceras, mocotós, sangue coagulado, bucho e outras partes desprezadas nas requintadas e fartas mesas sertanejas pertencentes àqueles que geralmente se encontravam no topo da sociedade sertaneja agropastoril e que se espelhavam no glamour imitado dos países europeus pelos mandatários de baraço e cutelo que se tornaram donos do poder, cuja descendência ainda se perpetua no que tange à manutenção do status quo.

Assim como a feijoada que os escravos inventaram para aproveitar as partes menos comestíveis, geralmente desprezadas pelos senhores de engenhos, a buchada de bode se afirmou desde o princípio como alimento de pobre, de quem não dispunha de recursos, daqueles que precisaram inovar para não perecer aos inúmeros surtos de fome que grassaram o Brasil quando da colonização, repetido hoje através do drama da urbanização anômala, em vista que geralmente o mercado externo, em poucos casos o interno, sempre foi a meta da produção agropecuária em larga escala desenvolvida no Brasil.   

O Nordeste Brasileiro, segundo dados do IBGE repetidos em sucessivos números e percentuais, detém o maior rebanho caprino do país. A ausência de manejo adequado ainda é uma constante a integrar extraordinária permanência cultural no que se refere à forma como se comporta o criatório. As estatísticas apontam ainda à subsistência da família do criador, embora o abastecimento do mercado interno seja garantido pelos heróicos caprinovinocultores que desafiam a indiferença das políticas públicas que ainda enxergam nos caprinos os bois e as vacas dos pobres e, como tal, dispõe poucos recursos para o desenvolvimento da atividade pecuária.

Herança da luta heróica pela sobrevivência da população pobre em uma região marcada pelos desafios constantes do cotidiano, sejam naturais ou antrópicos, a buchada de bode não raro é servida como prato exótico em restaurantes sofisticados onde os descendentes dos criadores da deliciosa iguaria sertaneja dificilmente conseguem adentrar para degustar o símbolo da culinária popular de uma região que abriga majoritariamente um povo sofrido e esperançoso por melhores dias.

(*) José Romero é Geógrafo e professor do Departamento de geografia da UERN.


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