BUCHADA DE BODE: SÍMBOLO DA CULINÁRIA
POPULAR DO SEMIÁRIDO NORDESTINO
O
interior nordestino foi colonizado com muita insistência, seguindo as pegadas
do gado bovino que caracterizou a civilização do couro, denominação oportuna do
historiador Capistrano de Abreu.
As
charqueadas inicialmente visavam abastecer espaços privilegiados sob a ótica mercantil
lusitana, como a área açucareira e depois mineira, não obstante a substituição
da hinterlândia nordestina tempos depois pelo charque produzido nos pampas
gaúchos, de melhor qualidade e de grande aceitação nas Minas Gerais.
Para
garantir a subsistência da população do semiárido foram introduzidas raças
caprinas extremamente rústicas que se adaptaram extraordinariamente às
condições edafoclimáticas regionais. O suporte
forrageiro que se constituiu em desafio à sobrevivência das boiadas foi
definido pelos caprinos e seus proprietários minguados de recursos econômicos,
de posses, a partir do que a caatinga oferece em suas espécies vegetais
miraculosamente adaptadas ao meio natural.
Impossibilitados
de adquirir recursos protéicos em larga escala, as cozinheiras anônimas,
diversas esposas dos caprinocultores nordestinos que garantiram e, nos dias
atuais, ainda garantem considerável parcela do percentual estatístico referente
à subsistência da civilização do couro, inovaram na delícia da culinária
popular sertaneja, aproveitando partes menos nobres dos animais de pequeno
porte abatidos.
A
buchada de bode exemplifica a exponencial criatividade suscitada pela
necessidade de sobrevivência da parcela mais humilde que desafia as intempéries
da área semiárida povoada mais extensa do planeta.
A
deliciosa iguaria surgida a partir da necessidade nutricional caracteriza-se
pela mistura de vísceras, mocotós, sangue coagulado, bucho e outras partes
desprezadas nas requintadas e fartas mesas sertanejas pertencentes àqueles que
geralmente se encontravam no topo da sociedade sertaneja agropastoril e que se
espelhavam no glamour imitado dos países europeus pelos mandatários de baraço e
cutelo que se tornaram donos do poder, cuja descendência ainda se perpetua no
que tange à manutenção do status quo.
Assim
como a feijoada que os escravos inventaram para aproveitar as partes menos comestíveis,
geralmente desprezadas pelos senhores de engenhos, a buchada de bode se afirmou
desde o princípio como alimento de pobre, de quem não dispunha de recursos,
daqueles que precisaram inovar para não perecer aos inúmeros surtos de fome que
grassaram o Brasil quando da colonização, repetido hoje através do drama da
urbanização anômala, em vista que geralmente o mercado externo, em poucos casos
o interno, sempre foi a meta da produção agropecuária em larga escala desenvolvida
no Brasil.
O
Nordeste Brasileiro, segundo dados do IBGE repetidos em sucessivos números e
percentuais, detém o maior rebanho caprino do país. A ausência de manejo
adequado ainda é uma constante a integrar extraordinária permanência cultural
no que se refere à forma como se comporta o criatório. As estatísticas apontam
ainda à subsistência da família do criador, embora o abastecimento do mercado
interno seja garantido pelos heróicos caprinovinocultores que desafiam a
indiferença das políticas públicas que ainda enxergam nos caprinos os bois e as
vacas dos pobres e, como tal, dispõe poucos recursos para o desenvolvimento da
atividade pecuária.
Herança
da luta heróica pela sobrevivência da população pobre em uma região marcada
pelos desafios constantes do cotidiano, sejam naturais ou antrópicos, a buchada
de bode não raro é servida como prato exótico em restaurantes sofisticados onde
os descendentes dos criadores da deliciosa iguaria sertaneja dificilmente conseguem
adentrar para degustar o símbolo da culinária popular de uma região que abriga
majoritariamente um povo sofrido e esperançoso por melhores dias.
(*)
José Romero é Geógrafo e professor do Departamento de geografia da
UERN.
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