MIOPIA E IRRESPONSABILIDADE
Em respeito aos meus eventuais leitores, peço permissão a CartaCapital, que me honra com este espaço desde o seu primeiro número, para lembrá-los de que no leilão da Hidrelétrica de
Belo Monte, em abril de 2010, haveria um único concorrente. Trabalhei
para ajudar a promover um segundo consórcio para que ele fosse mais
transparente, competitivo e vencesse o menor preço, o que daria maior
eficiência ao projeto. Foi o que de fato aconteceu. Recebi honorários
por serviço prestado, materialmente comprovado pelo resultado do leilão,
através de contratos registrados e impostos devidamente recolhidos.
A situação política e econômica nacional atingiu o seu paroxismo. Ao processo de impeachment
em curso, falta a clareza para convencer os espíritos que incorporam
como valor importante o respeito aos fatos. Se alguém for à magnífica
biblioteca da Câmara e separar ao acaso os livros de dois eminentes
juristas, há uma alta probabilidade de que o livro escolhido à sua
direita afirme, convictamente, que as razões para o impeachment são
óbvias: logo, é supérfluo procurá-las! Afinal, é preciso pedir mais
evidência diante do “resultado geral da obra”? Se, entretanto, o
escolhido for o da sua esquerda, provavelmente negará com a mesma
convicção seus fundamentos: a mera má avaliação da presidenta não
justifica, obviamente, a sua cassação. A tristeza é que o debate atingiu
um tal nível de miopia e irresponsabilidade que congelou governo e
oposição numa disputa suicida.
O verdadeiro problema nacional,
que a desastrada paixão de ambos tem se recusado a enfrentar, é o do
restabelecimento, com medidas constitucionais, das boas políticas
sociais e econômicas que
deram certo nos países hoje democráticos e desenvolvidos. Trata-se de
garantir o equilíbrio fiscal estrutural, a partir do qual o governo
adquire o seu papel fundamental: o espaço e a capacidade de administrar
com inteligência o nível de emprego da economia, sem destruir o
equilíbrio interno, o controle da taxa de inflação, e o externo, a taxa
de câmbio que garante o financiamento do déficit em conta corrente no
longo prazo com taxa de juros real parecida com a dos seus parceiros
internacionais.
Temos insistido, nesta coluna, que a boa
administração da relação dívida pública bruta/PIB é muito importante. Em
certa medida, determina tanto a política fiscal adequada (o déficit
orçamentário e o superávit primário) quanto a monetária (a taxa de juros
que, nas condições institucionais vigentes, é necessária para induzir a
sociedade a absorver o aumento da dívida bruta). Talvez valha a pena
insistir sobre quatro pontos: 1. A alguns economistas dão um peso maior
do que outros à evolução da relação dívida/PIB no médio prazo. 2. Um ajuste fiscal
de curto prazo sem a perspectiva de crescimento do PIB tem um custo
social muito elevado e é muito difícil de ser sustentado politicamente. 3.
Logo, é preciso combinar o ajuste fiscal de curto prazo, respeitado o
fato de que a economia já está operando muito abaixo do seu potencial,
com medidas que protejam a capacidade de investimento do setor público e
o “espírito animal” do setor privado. 4. É preciso reconhecer que os
mais fortes vetores do crescimento são os investimentos, público e
privado, que hoje vão muito mal, e o aumento da exportação, que já está
respondendo à correção da taxa cambial.
Talvez seja redundante, mas é preciso
dizer que a dívida pública tem um papel mais importante do que parece a
quem não teve tempo de dedicar-lhe atenção mais cuidadosa e crê que pode
compará-la, em seus efeitos, à dívida privada.
O governo, pelo menos na teoria, tem vida
infinita, e com algum cuidado pode estabilizar sua dívida com relação
ao PIB, que é o que interessa. Isso significa que, de fato, ele nunca
terá de pagá-la. Basta que observe a relação entre a taxa de crescimento
real do PIB e a taxa de juros real e... tenha algum juízo! Quando a
dívida é externa, a situação é muito diferente. Os juros pagos são uma
transferência de renda para o credor externo e reduzem a renda interna. É
por isso que devemos usá-la apenas para investimento e quando a taxa de
juro real for menor do que seu retorno.
Nunca o Brasil precisou tanto quanto hoje da recuperação do juízo do governo e da oposição!
Fonte: CartaCapital
Por Delfim Netto
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