É PRECISO APRENDER
A história é
aberta, o futuro não está contido no passado, de maneira que toda
previsão é apenas uma manifestação de nossas crenças e desejos e de
nossa tendência de organizar o mundo para tentar entendê-lo. Mas é ele, o
futuro, o único juiz iluminado e íntegro.
O problema é que o juízo sempre chega
tarde demais. Quem frequentou, relativamente liberto de compromissos
ideológicos, dois mundos tão antagônicos como o “liberalismo”, onde se crê numa espécie de ordem espontânea promovida pela instituição da propriedade privada, e o “marxismo”,
onde se crê que a propriedade privada é a origem da desordem, não pode
deixar de desconfiar que ambos, no fundo, têm um objetivo comum:
permitir que, com a liberdade, os homens se organizem para realizar plenamente a sua humanidade.
A grande prova de
que o “futuro” é mesmo opaco é que Lenin, o mais preparado e hábil
marxista, quando ainda estava na Suíça sendo devolvido à Rússia, disse,
em janeiro de 1917, que “duvidava que nós, os velhos, viveremos o
bastante para ver as batalhas decisivas da revolução que virá”. Em
outubro, comemorava a vitória da revolução!
Em agosto de 1918, escreveu uma generosa
carta aberta aos trabalhadores americanos, onde afirmou: “Mesmo se para
cada cem coisas corretas que estamos fazendo, cometermos 10 mil erros,
nossa revolução será ainda, e o será no julgamento da história, grande e
invencível. Esta é a primeira vez que não
apenas uma minoria, não apenas os ricos, não apenas os educados, mas a
maioria esmagadora dos trabalhadores, está construindo uma nova vida e
está, com sua própria experiência, resolvendo os mais difíceis problemas
da organização socialista”. O futuro não o absolveu!
A história mostrou que os “difíceis”
problemas da organização socialista centralizada eram ainda mais
difíceis do que supunha. Como resolver, sem o mercado, o problema da
informação que liga as necessidades de milhões de consumidores livres na
sua escolha com a capacidade produtiva de milhões de produtores que
livremente escolhem o que produzir? Mesmo hoje, parte da “esquerda” não
chega sequer a entender o que isso significa.
Na economia de mercado,
a coordenação é mais ou menos resolvida pelos preços relativos que nela
se estabelecem. Para calculá-los sem os mercados, não bastam
computadores. Seria preciso o intellectus angelicus, propriedade que nenhum miserável burocrata ateu há de possuir...
A questão que não se quer enfrentar é a
de responder por que, no socialismo “real” da URSS e seus satélites, e
outros países “socialistas” de economia centralizada, a anarquia
produzida pelo “planejamento” não pode ser corrigida por mais
“planejamento”?
Por que todos eles terminaram em regimes
totalitários, onde o poder sempre acaba nas mãos do líder com maior
vantagem comparativa na brutalidade? Por que, afinal, terminou tão mal a
restrição à liberdade individual, à igualdade de oportunidades num
nível inferior, à separação em quase castas e à enorme ineficiência
produtiva?
É evidente que a crítica ao
abuso ideológico do que chamamos “teoria econômica” (que, obviamente,
não é e nunca será uma ciência “dura”) para justificar a existência de
um “equilíbrio geral” (que afinal é o rigor mortis onde nada mais
se mexe); de agentes absolutamente racionais (que não são seres
humanos) ou de mercados perfeitos (que seriam a única obra perfeita do
homem) não deve ser levado ao relativismo absurdo que sugere que a
atividade econômica é um jogo sem sentido, onde todo voluntarismo é permitido.
O sucesso civilizatório dos países que usaram o sufrágio
universal para emponderar os cidadãos, juntamente com políticas sociais e
econômicas compatíveis com o conhecimento acumulado pelos economistas
ao longo dos últimos dois séculos (isto é, o mercado e a urna), é tão
distinto do miserável fracasso dos países que os desrespeitaram, que
devemos concordar que o melhor caminho é o percorrido pelos primeiros.
O que precisamos não é uma política de
“esquerda” ou de “direita”, mas de uma política que admita as duas,
porque o contraditório que desperta a atenção e não a cólera é o
instrumento do avanço da sociedade civilizada.
Afinal, depois de Smith, Marx, Keynes,
Polanyi e Braudel, é quase impossível que alguém ainda acredite que a
autorregulação dos mercados é uma manifestação das leis da natureza ou
que existam leis históricas, criadas no começo do mundo para facilitar a
vida dos futuros cultores das ciências sociais.
Fonte: CartaCapital
Por Delfim Netto
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