O CAPITALISMO NÃO É UMA COISA
Para
entender o mundo em que, por falta de alternativa, temos de viver,
precisamos reconhecer o homem como é, um animal terrivelmente
complicado. Enquanto ele priorizar a sua liberdade de escolha; enquanto
for, souber e sentir que é diferente do “outro”; enquanto nem mesmo a
mais longa privação da sua liberdade for capaz de incorporar no seu DNA
um comportamento comunitário instintivo (a hipótese lamarckiana),
continuará a sê-lo. Isso não nega sua natural empatia, e solidariedade,
nem um natural altruísmo com relação ao “outro”.
É por isso que a organização social “civilizada” que
ele vem tentando construir por meio de uma seleção histórica (que imita
a biológica, mas tem finalidade) respeita essa característica. Como
queria um velho companheiro, no rascunho original do Manifesto, “uma
sociedade na qual cada um dos seus membros possa usar sua energia e suas
capacidades na mais completa liberdade sem infringir os seus
fundamentos”.
Trata-se de um longo processo para o qual não existe
curto-circuito. Avança lentamente, impulsionado pelo uso continuado de
uma invenção do homem – o sufrágio cada vez mais universal – que os
trabalhadores organizados em sindicatos durante a Revolução Industrial conquistaram para escolher o poder incumbente.
Ele mitiga, com o voto na urna (onde a igualdade é cada
vez mais completa), o poder econômico do capital e empodera aqueles que,
para viver, têm como única alternativa vender-lhe sua força de
trabalho. O que chamamos de “capitalismo”
é apenas um instante passageiro desse processo histórico. Nem é
natural, nem é eterno, como insistem em supor alguns economistas.
Ele acelerou o nível de
desenvolvimento dos países que o adotaram e promoveu uma distribuição de
seus benefícios, ainda que precária. E respondeu melhor do que os
inventados por cérebros peregrinos que sempre terminaram destruindo a
liberdade e negando a igualdade, numa dramática redução da eficiência
produtiva. As críticas morais devastadoras de Marx ao capitalismo do
século XIX e a dos socialistas fabianos (não marxistas) do século XX
foram ingredientes importantes na “civilização” do capitalismo.
Toda simplificação de um problema complexo é, por
definição, uma caricatura problemática! Mas não se fará uma traição
muito comprometedora se supusermos que tanto os economistas que Marx
chamava de clássicos quanto ele mesmo sempre duvidaram que os efeitos e
benefícios da acumulação do capital e do progresso técnico acabassem, no
“capitalismo”, migrando para a mão de obra na forma de aumento dos
salários reais. Nunca separaram o crescimento da distribuição de seus
frutos e, por isso, nunca foram muito otimistas.
Nenhum dos clássicos (nem Marx), entretanto, pôde testar
suas teorias a partir de 1870, quando o crescimento da população, a
incorporação de novas tecnologias, as inovações, a revolução energética, a expansão dos mercados pelo aumento da renda e pela geografia aceleraram o aumento da produtividade
da mão de obra (o codinome do desenvolvimento econômico) e o crescente
empoderamento do cidadão-trabalhador pelo sufrágio cada vez mais
universal mudou a distribuição de seus frutos.
Se Marx ressuscitasse hoje, provavelmente
se surpreenderia e se entusiasmaria com a fantástica metamorfose do seu
capitalismo “inovador e revolucionário” sob a pressão organizada do
cidadão-trabalhador empoderado pelo sufrágio cada vez mais universal.
Talvez lamentasse o uso desastrado de suas ideias no século XX, por
asseclas que não as entenderam.
E continuaria, ainda, a achar o “capitalismo do século XXI”
injusto e profundamente imoral. Teria mais cuidado, entretanto, em
sugerir remédios para corrigi-los, além de: 1. Propiciar ao
cidadão-trabalhador mais educação para respeitar os limites físicos
impostos pela realidade. 2. Continuar a insistir no seu empoderamento
para eventualmente superá-los.
Fonte: CartaCapital
Por Delfin Netto
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