O CAPITALISMO INOVADOR
E REVOLUCIONÁRIO
Para entender o mundo em
que, por falta de alternativa temos que viver, precisamos reconhecer o
homem como é: um animal terrivelmente complicado. Enquanto ele priorizar
a sua liberdade de escolha; enquanto for, souber e sentir que é
diferente do "outro"; enquanto nem mesmo a mais longa privação da sua
liberdade for capaz de incorporar ao seu DNA (a hipótese lamarckiana) um
comportamento comunitário instintivo, continuará a sê-lo.
Isso não nega sua natural empatia e solidariedade, nem um natural
altruísmo com relação ao "outro". É por isso que a organização social
"civilizada", que ele vem tentando construir através de uma seleção
histórica (que imita a biológica, mas tem finalidade), deve atender a
pelo menos três objetivos não inteiramente compatíveis: 1) que lhe
permita exercer sua atividade com ampla liberdade e com respeito à
liberdade do "outro"; 2) que, a despeito das diferenças do acidente do
local do seu nascimento, sinta-se nela recepcionado, integrado e goze de
relativa igualdade; e 3) que se sinta inserido num processo produtivo
relativamente eficiente, que lhe deixe mais tempo e oportunidades para
usar a sua relativa liberdade e relativa igualdade na exploração das
suas potencialidades.
É evidente que esses três valores, quando absolutos, ou se negam ou
são contraditórios. Basta refletir um pouco para concordar que: a) a
liberdade absoluta é apenas o caos; b) o excesso de liberdade assassina a
igualdade, mesmo a relativa, porque somos, biologicamente, diferentes; e
c) a busca da absoluta eficiência produtiva nega a liberdade de
iniciativa, a igualdade e, no limite, a própria eficiência relativa...
O que chamamos de "capitalismo" não é natural, nem eterno
Trata-se de um longo processo, que avança lentamente, impulsionado
pelo uso continuado de uma invenção do homem - o sufrágio cada vez mais
universal - que os trabalhadores organizados em sindicatos durante a
revolução industrial no século XIX conquistaram para que pudessem
escolher o poder incumbente.
Ele mitiga, com o voto na urna (onde a igualdade é cada vez mais
completa), o poder econômico do capital no mercado e empodera os que,
para viver, têm, como única alternativa, vender-lhe sua força de
trabalho.
O que chamamos de "capitalismo" é apenas um instante passageiro desse
processo histórico. Nem é natural, nem é eterno, como insistem em
acreditar alguns economistas. Ele tem atendido razoavelmente às
condições anteriores. Acelerou o nível de desenvolvimento e promoveu uma
distribuição ainda precária dos seus benefícios. E, até agora,
respondeu melhor do que as organizações sociais inventadas por cérebros
peregrinos, porque, como disse Goya, "os sonhos da razão produzem
monstros".
É claro que as críticas morais devastadoras de Marx ao capitalismo do
século XIX e a dos socialistas fabianos (não marxistas) do século XX
foram ingredientes importantes na evolução (que não terminou) do
"capitalismo" atual. Pelo jogo continuado entre o mercado (o poder do
capital) e a urna (que empodera o poder incumbente para regulá-lo na
direção desejada pela maioria dos cidadãos empoderados por ela) vai-se
construindo uma sociedade, cuja organização converge, assintoticamente,
para a "civilizada".
Toda simplificação de um problema complexo é, por definição, uma
caricatura problemática! Mas não se fará uma traição muito
comprometedora, se dissermos que tanto os economistas clássicos como
Marx sempre duvidaram que os efeitos e benefícios da acumulação do
capital e do progresso técnico acabassem, no "capitalismo", migrando
para a mão de obra na forma de aumento dos salários reais. Eles não
tiveram condições para avaliar as consequências do processo num tempo
mais longo. Os fatos pareciam, então, acomodar-se às suas conclusões.
A partir de 1870, o crescimento da população, a incorporação de novas
tecnologias, de inovações, a revolução energética, a expansão dos
mercados, pelo aumento da renda e pela geografia, aceleraram o aumento
da produtividade da mão de obra (codinome do desenvolvimento econômico).
O crescente empoderamento do cidadão-trabalhador pelo sufrágio cada vez
mais universal, modificou, também, a distribuição de seus frutos e
aumentou o salário real.
Se Marx ressuscitasse hoje, provavelmente se surpreenderia e se
entusiasmaria com a fantástica metamorfose do seu capitalismo "inovador e
revolucionário" sob a pressão organizada do cidadão-trabalhador. Talvez
lamentasse o uso desastrado de suas ideias no século XX, por asseclas
descuidados. E continuaria, com razão, a achar o "capitalismo do século
XXI" ainda injusto e profundamente imoral.
Provavelmente teria mais cuidado, entretanto, em sugerir os remédios
para corrigi-lo, além de 1) propiciar ao cidadão-trabalhador mais
educação para respeitar os limites físicos impostos pela realidade e 2)
continuar a insistir no seu empoderamento para um dia superá-los.
Fonte: Valor Online
Por Delfim Netto
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