terça-feira, 13 de outubro de 2015

O CAPITALISMO INOVADOR 

E REVOLUCIONÁRIO

Para entender o mundo em que, por falta de alternativa temos que viver, precisamos reconhecer o homem como é: um animal terrivelmente complicado. Enquanto ele priorizar a sua liberdade de escolha; enquanto for, souber e sentir que é diferente do "outro"; enquanto nem mesmo a mais longa privação da sua liberdade for capaz de incorporar ao seu DNA (a hipótese lamarckiana) um comportamento comunitário instintivo, continuará a sê-lo.

Isso não nega sua natural empatia e solidariedade, nem um natural altruísmo com relação ao "outro". É por isso que a organização social "civilizada", que ele vem tentando construir através de uma seleção histórica (que imita a biológica, mas tem finalidade), deve atender a pelo menos três objetivos não inteiramente compatíveis: 1) que lhe permita exercer sua atividade com ampla liberdade e com respeito à liberdade do "outro"; 2) que, a despeito das diferenças do acidente do local do seu nascimento, sinta-se nela recepcionado, integrado e goze de relativa igualdade; e 3) que se sinta inserido num processo produtivo relativamente eficiente, que lhe deixe mais tempo e oportunidades para usar a sua relativa liberdade e relativa igualdade na exploração das suas potencialidades.

É evidente que esses três valores, quando absolutos, ou se negam ou são contraditórios. Basta refletir um pouco para concordar que: a) a liberdade absoluta é apenas o caos; b) o excesso de liberdade assassina a igualdade, mesmo a relativa, porque somos, biologicamente, diferentes; e c) a busca da absoluta eficiência produtiva nega a liberdade de iniciativa, a igualdade e, no limite, a própria eficiência relativa...

O que chamamos de "capitalismo" não é natural, nem eterno

Trata-se de um longo processo, que avança lentamente, impulsionado pelo uso continuado de uma invenção do homem - o sufrágio cada vez mais universal - que os trabalhadores organizados em sindicatos durante a revolução industrial no século XIX conquistaram para que pudessem escolher o poder incumbente.

Ele mitiga, com o voto na urna (onde a igualdade é cada vez mais completa), o poder econômico do capital no mercado e empodera os que, para viver, têm, como única alternativa, vender-lhe sua força de trabalho.

O que chamamos de "capitalismo" é apenas um instante passageiro desse processo histórico. Nem é natural, nem é eterno, como insistem em acreditar alguns economistas. Ele tem atendido razoavelmente às condições anteriores. Acelerou o nível de desenvolvimento e promoveu uma distribuição ainda precária dos seus benefícios. E, até agora, respondeu melhor do que as organizações sociais inventadas por cérebros peregrinos, porque, como disse Goya, "os sonhos da razão produzem monstros".

É claro que as críticas morais devastadoras de Marx ao capitalismo do século XIX e a dos socialistas fabianos (não marxistas) do século XX foram ingredientes importantes na evolução (que não terminou) do "capitalismo" atual. Pelo jogo continuado entre o mercado (o poder do capital) e a urna (que empodera o poder incumbente para regulá-lo na direção desejada pela maioria dos cidadãos empoderados por ela) vai-se construindo uma sociedade, cuja organização converge, assintoticamente, para a "civilizada".

Toda simplificação de um problema complexo é, por definição, uma caricatura problemática! Mas não se fará uma traição muito comprometedora, se dissermos que tanto os economistas clássicos como Marx sempre duvidaram que os efeitos e benefícios da acumulação do capital e do progresso técnico acabassem, no "capitalismo", migrando para a mão de obra na forma de aumento dos salários reais. Eles não tiveram condições para avaliar as consequências do processo num tempo mais longo. Os fatos pareciam, então, acomodar-se às suas conclusões.

A partir de 1870, o crescimento da população, a incorporação de novas tecnologias, de inovações, a revolução energética, a expansão dos mercados, pelo aumento da renda e pela geografia, aceleraram o aumento da produtividade da mão de obra (codinome do desenvolvimento econômico). O crescente empoderamento do cidadão-trabalhador pelo sufrágio cada vez mais universal, modificou, também, a distribuição de seus frutos e aumentou o salário real.

Se Marx ressuscitasse hoje, provavelmente se surpreenderia e se entusiasmaria com a fantástica metamorfose do seu capitalismo "inovador e revolucionário" sob a pressão organizada do cidadão-trabalhador. Talvez lamentasse o uso desastrado de suas ideias no século XX, por asseclas descuidados. E continuaria, com razão, a achar o "capitalismo do século XXI" ainda injusto e profundamente imoral.

Provavelmente teria mais cuidado, entretanto, em sugerir os remédios para corrigi-lo, além de 1) propiciar ao cidadão-trabalhador mais educação para respeitar os limites físicos impostos pela realidade e 2) continuar a insistir no seu empoderamento para um dia superá-los.

Fonte: Valor Online
Por Delfim Netto

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