JOGO COMPLEXO E DEMORADO
Quanto
mais as análises se sofisticam, de um lado pela aplicação de
inferências que emergem de uma dialética que “descobre” leis históricas
e, de outro, com um cientificismo pretensioso que esconde uma teologia
que “naturaliza” os mercados (autorregulados, eficientes e morais),
menos seremos capazes de compreender os fenômenos econômicos e o seu
desenrolar no tempo. Nas “ciências sociais”, particularmente na
Economia, o futuro é absolutamente opaco. A experiência demonstra a cada
dia que as séries de tempo não são ergódicas. Em outras palavras, o
futuro não está escondido numa dobra do tempo passado. Logo, é inútil
esperar que ele, convenientemente torturado pela dialética ou pela
teologia, fará uma “delação premiada”...
O longo prazo será sempre um
enigma, mas nem tudo está perdido. Ele é uma sucessão de curtos prazos
que estão longe de ser repetitivos ou aleatórios, pois são condicionados
pelo ambiente criado pela ação do Estado por meio do poder incumbente
que momentaneamente o representa. Eles são diferentes, mas não
aleatórios, uma vez que são determinados pela ideologia que os orienta. A
experiência histórica sugere que, como no mundo físico, no mundo social
as mesmas causas tendem a produzir efeitos parecidos. Não produzem os
mesmos porque nelas o agente (o átomo ou a molécula) que responde ao
estímulo é um animal complicado: tem interesses e aprende a defendê-los,
pensa, tem expectativas, tem ideologia, reclama, reage e se associa a
outros. Mais grave do que tudo, pode aprovar ou reprovar na próxima
eleição o poder incumbente que representa o Estado.
Desde que deixou a África há 100 mil anos, os homens
procuram uma organização social e econômica que: 1. Os liberte de toda
restrição à sua atividade criativa e lhes permita apropriar-se dos
resultados das ações produzidas por essa liberdade. 2. Que lhes dê uma
relativa igualdade de oportunidades (cada um deve depender menos da
loteria do seu nascimento). 3. Que a transmissão das riquezas que tenham
eventualmente conseguido pela sorte ou pelo mérito seja mitigada. A
“justiça social” significa, principalmente, igualdade do ponto de
partida na vida ativa, o que sugere que saúde e educação sejam
universais e financiadas por toda a sociedade por meio de impostos
gerais que devem prover, também, um mecanismo de solidariedade que
estimule a inclusão dos menos favorecidos e os capacite para conquistar,
com sua própria atividade, sua completa cidadania.
Os homens não inventaram o “mercado”. Eles foram
descobertos na sua atividade prática. Na busca do aumento da
produtividade do trabalho inventaram a propriedade privada, o que os
separou em dois conjuntos que, à medida que crescem os avanços
tecnológicos, têm cada vez maior intersecção: os que controlam o capital
e os que lhes alugam a sua força de trabalho. A isso se chamou de
“capitalismo”, que não é uma coisa, mas um processo histórico que
sobreviveu pelo fato de o poder econômico do capital ter sido
relativizado pela invenção do sufrágio universal que produz um viés
político a favor do trabalho. Ele não é eterno nem perfeito.
Alguns, ingenuamente, acreditaram
que o afundamento da União Soviética, em 1989, representou a vitória
definitiva do capitalismo “real” sobre o socialismo “real”. Como
Jean-Paul Sartre no século XX, com seu “marxismo” não ultrapassável,
Francis Fukuyama, no século XXI, acreditou que o fracasso da experiência
soviética era “o ponto final da evolução ideológica da humanidade... e a
forma final das formas de governo”. Quem esquece “que na prática a
teoria é outra”, amanhece superado. Como o “capitalismo” é um processo
adaptativo e o próprio “sufrágio universal” se aperfeiçoa, suspeito que a
teoria da esquerda míope de hoje, que “capitalismo” e “democracia” são
incompatíveis, terá, na prática, o mesmo destino...
A persistência do jogo delicado, complexo
e demorado entre o “mercado” e a “urna” parece até agora ser a única
capaz de conduzir à conciliação adequada entre três valores não
plenamente conciliáveis: a liberdade, a igualdade e a eficiência
produtiva, implícitas na sociedade “civilizada”.
Fonte: CartaCapital
Por Delfim Netto
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