quarta-feira, 15 de julho de 2015

JOGO COMPLEXO E DEMORADO

Quanto mais as análises se sofisticam, de um lado pela aplicação de inferências que emergem de uma dialética que “descobre” leis históricas e, de outro, com um cientificismo pretensioso que esconde uma teologia que “naturaliza” os mercados (autorregulados, eficientes e morais), menos seremos capazes de compreender os fenômenos econômicos e o seu desenrolar no tempo. Nas “ciências sociais”, particularmente na Economia, o futuro é absolutamente opaco. A experiência demonstra a cada dia que as séries de tempo não são ergódicas. Em outras palavras, o futuro não está escondido numa dobra do tempo passado. Logo, é inútil esperar que ele, convenientemente torturado pela dialética ou pela teologia, fará uma “delação premiada”...

O longo prazo será sempre um enigma, mas nem tudo está perdido. Ele é uma sucessão de curtos prazos que estão longe de ser repetitivos ou aleatórios, pois são condicionados pelo ambiente criado pela ação do Estado por meio do poder incumbente que momentaneamente o representa. Eles são diferentes, mas não aleatórios, uma vez que são determinados pela ideologia que os orienta. A experiência histórica sugere que, como no mundo físico, no mundo social as mesmas causas tendem a produzir efeitos parecidos. Não produzem os mesmos porque nelas o agente (o átomo ou a molécula) que responde ao estímulo é um animal complicado: tem interesses e aprende a defendê-los, pensa, tem expectativas, tem ideologia, reclama, reage e se associa a outros. Mais grave do que tudo, pode aprovar ou reprovar na próxima eleição o poder incumbente que representa o Estado.

Desde que deixou a África há 100 mil anos, os homens procuram uma organização social e econômica que: 1. Os liberte de toda restrição à sua atividade criativa e lhes permita apropriar-se dos resultados das ações produzidas por essa liberdade. 2. Que lhes dê uma relativa igualdade de oportunidades (cada um deve depender menos da loteria do seu nascimento). 3. Que a transmissão das riquezas que tenham eventualmente conseguido pela sorte ou pelo mérito seja mitigada. A “justiça social” significa, principalmente, igualdade do ponto de partida na vida ativa, o que sugere que saúde e educação sejam universais e financiadas por toda a sociedade por meio de impostos gerais que devem prover, também, um mecanismo de solidariedade que estimule a inclusão dos menos favorecidos e os capacite para conquistar, com sua própria atividade, sua completa cidadania.

Os homens não inventaram o “mercado”. Eles foram descobertos na sua atividade prática. Na busca do aumento da produtividade do trabalho inventaram a propriedade privada, o que os separou em dois conjuntos que, à medida que crescem os avanços tecnológicos, têm cada vez maior intersecção: os que controlam o capital e os que lhes alugam a sua força de trabalho. A isso se chamou de “capitalismo”, que não é uma coisa, mas um processo histórico que sobreviveu pelo fato de o poder econômico do capital ter sido relativizado pela invenção do sufrágio universal que produz um viés político a favor do trabalho. Ele não é eterno nem perfeito.

Alguns, ingenuamente, acreditaram que o afundamento da União Soviética, em 1989, representou a vitória definitiva do capitalismo “real” sobre o socialismo “real”. Como Jean-Paul Sartre no século XX, com seu “marxismo” não ultrapassável, Francis Fukuyama, no século XXI, acreditou que o fracasso da experiência soviética era “o ponto final da evolução ideológica da humanidade... e a forma final das formas de governo”. Quem esquece “que na prática a teoria é outra”, amanhece superado. Como o “capitalismo” é um processo adaptativo e o próprio “sufrágio universal” se aperfeiçoa, suspeito que a teoria da esquerda míope de hoje, que “capitalismo” e “democracia” são incompatíveis, terá, na prática, o mesmo destino...

A persistência do jogo delicado, complexo e demorado entre o “mercado” e a “urna” parece até agora ser a única capaz de conduzir à conciliação adequada entre três valores não plenamente conciliáveis: a liberdade, a igualdade e a eficiência produtiva, implícitas na sociedade “civilizada”. 

Fonte: CartaCapital
Por Delfim Netto 


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