terça-feira, 21 de setembro de 2010

POR JOSÉ TELES*



O DISCO EM QUE O SONHO DEU LUGAR AO PESADELO

Plastic Ono band não pode ser comparado a nenhum disco dos Beatles

Ninguém ouve mais John Lennon. Naturalmente, generalizo, pois há muita gente que curte John Lennon. Os Beatles, pelo contrário, continuam ouvidos e muito. E devem continuar ouvidos séculos e séculos, que a sua música, feito Bach, Beethoven, é boa e atemporal. Os Beatles, como já escrevi várias vezes, foram um todo maior que as partes. E a dupla Lennon & McCartney não foi o começo de uma nova fase para o rock and roll, classudo, chique, sofisticado. Pelo contrário, a dupla foi o fim de uma era de grandes compositores de canções.

Solo, os quatro Beatles tem raros discos que possam se equiparar ao que fizeram com os Beatles. Ringo, considerado o menos talentoso do quarteto, foi o primeiro a emplacar nas paradas mundo afora com It don't come easy, em 1971. Em 1973, lançaria Ringo, um grande disco, e o último a ter todos os quatro Beatles em um álbum (embora não ao mesmo tempo, no mesmo estúdio). George Harrison fez o All things must pass, sua obra prima (que teria sido ainda mais "prima" se fosse um álbum duplo. e não triplo, o primeiro da história do pop/rock). Paul McCartney, é praticamente uma unanimidade, chegou perto dos Beatles com Band on the run, de 1973. John Lennon tem em Imagine seu grande momento de popularidade na carreira individual, acredita a maioria dos fãs, e dos não tão fãs assim.

Esquecem-se de outro álbum de Lennon, o Plastic Ono Band, seu primeiro disco solo, de 1970 (os que ele lançou com Yoko antes, experimentalismo sem maiores conseqüências, feito o Two virgins, não contam). Plastic Ono band não pode ser comparado a nenhum disco dos Beatles. Aliás, 40 anos depois, Plastic Ono Band não pode ser comparado a nenhum outro disco da história do rock. É um trabalho único, e um dos mais importantes feito por um roqueiro do primeiro time. Aliás, Lennon tem também outro grande disco, Walls and bridge, 1975, seu último disco de inéditas até Double fantasy, de 1980. este merecia até uma crônica à parte.
O sonho desfeito, o ex-Beatle foi em busca de si mesmo, dos seus fantasmas, dos esqueletos escondidos em seu armário

Em janeiro de 1970, o psiquiatra americano Arthur Janov lançou um livro sobre a terapia primal, ou Primal Therapy. A editora (ou talvez ele, Janov) mandou um exemplar para Lennon. Em março ele convidou o doutor Janov para ir a sua casa nos arredores de Londres. As sessões de terapia primal começaram. Grosso modo, este tratamento terápico consiste em que o analisado descubra o que dói em sua alma. Na base da catarse, gritos, choros, alcançando, localizando e exorcizando o ponto onde o trauma que ocasionou a dor. As sessões continuaram mais tarde em Los Angeles, onde vive o médico. Segundo Janov, foi aí que John Lennon, inspirado na terapia primal, começou a compor as canções do Plastic Ono Band. Conversando sobre religião, o médico teria dito que as pessoas voltam-se para Deus na tentativa de aliviar a dor que sentem. John Lennon então compôs God, uma de suas grandes canções, mesmo entre as que fez para os Beatles. A dos antológicos versos: "God is a concept by wich we measure our pain (Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor).

God é um dos grande momentos da canção popular do século 20. A faixa crucial de Plastic Ono Band. Na letra John Lennon põe abaixo crenças, ideologias, esperanças, utopias, e reduz tudo a um mínimo divisor comum: nada interessa, a não ser ele próprio e o amor que move os homens e o universo. No seu caso, o amor era Yoko Ono. Com uma das interpretações mais matadoras de sua carreira, ele vai derrubando estátuas, estantes, prateleiras, livros, louças (com licença para esta citação de versos de É proibido proibir, de Caetano Veloso: "Não acredito em mágica/...Não acredito na Bíblia/não acredito em Hitler/não acredito em Jesus/...não acredito em Kennedy/...não acredito em Elvis/não acredito em Zimmerman (sobrenome real de Bob Dylan)/não acredito em Beatles/só acredito em mim, e isto é a realidade". E então o arremate antológico: "O sonho acabou/ o que posso dizer?/o sonho acabou/ ontem/...Fui a morsa (walrus)/ mas agora sou John/De maneira que, caros amigos/vocês tem que continuar/o sonho acabou".

"O sonho acabou", foi uma das afirmações mais cruciais para a geração era de aquarius, na virada dos 60 para os 70. Os que pensavam que o mundo iria ser da paz e do amor. John Lennon caiu na real. A utopia que se imaginava alcançar continuava cada vez mais utopia. A guerra do Vietnã não dava sinais de chegar a um final; na América Latina e na Ásia, na Grécia, as ditaduras recrudesciam sua ferocidade. Na Europa, a ressaca do maio de 1968, trouxe os conservadores o poder e com apoio da classe média. O sonho acabou, mesmo. E o pesadelo apenas estava começando.

O sonho desfeito, o ex-Beatle foi em busca de si mesmo, dos seus fantasmas, dos esqueletos escondidos em seu armário. Assim como ficou com Yoko nu em pelo na capa do álbum Two virgins, de 1968, ele desnudou a alma em Plastic Ono Band. Nunca até então, e talvez até hoje, se fez canções tão cruamente viscerais e confessionais. Embora tenha convidado Phil Spector, não exatamente um produtor adepto à sutilezas ou discrição, a sonoridade de Plastic Ono Band é mais simples imaginável, como uma top model sem maquiagem. Continua bonita, mas é meio estranha. De volta a Inglaterra, John reuniu alguns músicos com os quais costumava tocar. Ringo, sempre a postos para o ex-colega de banda, que dividiu as baquetas com Alan White. O alemão Klauss Voormann , tocou baixo. Os teclados foram pilotados por Billy Preston.

Lennon fez do estúdio a extensão do divã do psicanalista. Mother, a primeira canção do disco, vai fundo no trauma de ter perdido a mãe, justamente, quando ela voltava para o filho, que era criado pela severa tia Mimi. lamentado também é abandono do pai. Se em Help, o confuso Beatle pedia uma ajuda discreta, em Mother ele queria exorcizar a experiência traumática. No final da canção vai ao paroxismo da catarse, berrando guturalmente: "Mother don't go/Daddy come home." A capa despojada (mostra o casal, John & Yoko, recostado a uma árvore diante de uma paisagem bucólica de campo. Mother era uma música feita para ele mesmo, e não para fãs comprarem e se divertirem, como acontecia mesmo nos mais sofisticados momentos dos Beatles. Enquanto solta os bichos que o afligem, Lennon reafirma seu amor por Yoko. São eles dois contra o mundo: "Just a boy and a girl/trying to change the whole wide world...The world is just a little town/everybody trying to put us down (apenas um garoto e uma garota/tentando mudar o mundo inteiro/...O mundo é uma pequena cidade/e todos querem nos elimar), versos de Isolation. Uma das músicas que se destacaram no POB, foi Working class hero, uma canção folk, com uma letra direta, sem floreios, antecipa the wall, do Pink Floyd, em nove anos : "They hurt you at home and they hit you at school/they hate you if you're clever and they despise you fool" (Te magoam em casa, te batem na escola/odeiam se você é inteligente, e te desprezam se é babaca). Plastic Ono Band não tem uma única faixa que fosse candidata às paradas (o disco é de 1970, quando os compactos ainda eram capazes de incensar as vendas do LP).

Plastic Ono Band foi um disco mais comentado, do que consumido. Lennon já estava acostumado àquilo. Seus três discos feitos com Yoko, eram todos experimentais, as poucas cópias vendidas foram adquiridas, em sua maioria, por beatlemaníacos. POB não vendeu muito, mesmo sendo um disco de um Beatle. Pudera, Lennon o fez para si mesmo, e Yoko Ono. Os vocais quase não tem tratamento de estúdio,o acompanhamento é espartano. O repertório não tem nada pra cima, harmonias à Beatles, refrões pegajosos, melodias assoviáveis. Começa com uma catarse, termina com um canto lúgubre, My mummy is dead. Ambos relembrando Julia, mãe, que morreu atropelada, na rua de casa, por um policial bêbado: “Minha mãe está morta/não consigo tirar da cabeça/embora tenham passado tantos anos/minha mãe morreu/é difícil explicar/tanta dor/ e dela nunca pude falar/ minha mãe morreu".

* José Teles escreve sobre música no Jornal do Comércio de Recife.

Enviado por Togo Ferrário Leite









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