quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

QUE DESCANSE EM PAZ


Vamos tratar de um assunto árido e técnico, mas muito importante para despertar no leitor a desconfiança sobre frequentes mistificações que lhe são impostas em nome de uma certa “ciência econômica”.

Por exemplo, quando usando imaginárias funções de produção que verticalizam e agregam os valores adicionados que constituem o PIB, propõe-se separar as “causas” do crescimento econômico.

Quando chegou à FEA/USP, com seis meses de atraso, o sempre ansiosamente esperado Quarterly Journal of Economics (71(4)1957), o prof. Luiz de Freitas Bueno organizou um seminário em torno de um dos seus artigos (Brown, E.H.P. “The Meaning of the Fitted Cobb-Douglas Function”), que cuidava do maior sucesso econométrico de então, a estimativa de uma função de produção agregada que gerava grandes esperanças para a política econômica.

No fim do dia, acabamos desenxabidos. Brown sugeria, convincentemente, que o resultado obtido por Cobb-Douglas era um “artifício estatístico”.

A crítica definitiva veio mais tarde, num cuidadoso artigo de Simon, H. e Levy, F. “A Note on the Cobb-Douglas Production Function” (Review of Economic Studies, 30(3)1963), onde se mostrou que, da identidade em termos de valor adicionado pelo trabalho (L) e pelo capital (K), se obtém, se a participação do trabalho for constante, a função Y = ALaK1-a, que é a Cobb-Douglas.

Mas aqui o parâmetro “a” não tem ligação, nem remota, com a produtividade marginal do trabalho numa função de produção física. Uma demonstração elementar da equivalência entre as duas foi dada por Shaikh, A. em 1974. Ninguém a levou a sério, apenas porque ele é um “marxista”... 

Nos anos 1957 e 1958, houve uma curiosa coincidência. A publicação de Brown já citada foi acompanhada pela magnífica contribuição de Robert Solow (“Technical Change and the Aggregate Production Function”, 1957), que mesmerizou todos os que só pensavam no desenvolvimento, que era o caso da FEA/USP.

Em torno dela se organizou toda a teoria do crescimento exógeno, apesar da enigmática observação do próprio Solow de que era “necessário muito mais do que uma bem-intencionada suspensão do espírito crítico para falar, seriamente, de uma função de produção agregada”. Devido à beleza, elegância e aparente fertilidade do modelo, todos esquecemos os percalços menores.

Recentemente foi publicado um livro imperdível, principalmente para aqueles que continuam a insistir na existência de uma função de produção verticalmente integrada e a sonhar com a possibilidade de calcular as contribuições “independentes” sobre o crescimento econômico da produtividade total dos fatores (PTF), do trabalho e do capital.

Trata-se do rigoroso The Aggregate Production Function and the Measurement of Technical Change: Note Even Wrong, de Jesus Felipe e S. L. McCombie, dois competentes profissionais no assunto. Nas suas quase 400 páginas escrutinizaram praticamente tudo o que se escreveu sobre ele nos últimos 90 anos.

Com exemplos bem escolhidos e simulações bem projetadas, expõem todas as falácias que se escondem nas inexistentes funções de produção agregada. Os resultados das simulações podem ser assim resumidos:

1. A PTF depende, nas funções de produção estimadas, dos pesos atribuídos ao crescimento do trabalho e do capital.

2. Quando é possível comparar o “verdadeiro” crescimento do progresso tecnológico (nas equações microeconômicas) com os obtidos através da regressão dos valores agregados, verifica-se que podem ser muito diferentes (págs. 110/111).

Em resumo, existem funções de produção física na microeconomia para cada empresa e para cada bem ou serviço, mas a sua agregação exige condições muito difíceis de ser satisfeitas. A função de produção verticalmente agregada é um “experimento cerebrino” didaticamente interessante, mas que encontra pouca correspondência nas regressões estimadas com funções construídas a partir de identidade de valor agregado: Y = salário + lucro.

Como dizem os autores, “os conceitos de produtividade total dos fatores e de função de produção agregada servem mais para ofuscar do que iluminar o problema: Por que as taxas de crescimento diferem entre os países? (pág. 209).

“Requiescat in pace”... 

Por Delfim Netto 

 

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