QUE DESCANSE EM PAZ
Vamos tratar de um assunto árido e técnico, mas muito
importante para despertar no leitor a desconfiança sobre frequentes
mistificações que lhe são impostas em nome de uma certa “ciência
econômica”.
Por exemplo, quando usando imaginárias funções de produção que verticalizam e agregam os valores adicionados que constituem o PIB, propõe-se separar as “causas” do crescimento econômico.
Quando chegou à FEA/USP, com seis meses de atraso, o sempre ansiosamente esperado Quarterly Journal of Economics
(71(4)1957), o prof. Luiz de Freitas Bueno organizou um seminário em
torno de um dos seus artigos (Brown, E.H.P. “The Meaning of the Fitted
Cobb-Douglas Function”), que cuidava do maior sucesso econométrico de
então, a estimativa de uma função de produção agregada que gerava
grandes esperanças para a política econômica.
No fim do dia, acabamos desenxabidos. Brown sugeria,
convincentemente, que o resultado obtido por Cobb-Douglas era um
“artifício estatístico”.
A crítica definitiva veio mais tarde, num cuidadoso artigo
de Simon, H. e Levy, F. “A Note on the Cobb-Douglas Production
Function” (Review of Economic Studies, 30(3)1963), onde se
mostrou que, da identidade em termos de valor adicionado pelo trabalho
(L) e pelo capital (K), se obtém, se a participação do trabalho for
constante, a função Y = ALaK1-a, que é a Cobb-Douglas.
Mas aqui o parâmetro “a” não tem ligação, nem remota, com a
produtividade marginal do trabalho numa função de produção física. Uma
demonstração elementar da equivalência entre as duas foi dada por
Shaikh, A. em 1974. Ninguém a levou a sério, apenas porque ele é um
“marxista”...
Nos anos 1957 e 1958, houve uma
curiosa coincidência. A publicação de Brown já citada foi acompanhada
pela magnífica contribuição de Robert Solow (“Technical Change and the
Aggregate Production Function”, 1957), que mesmerizou todos os que só
pensavam no desenvolvimento, que era o caso da FEA/USP.
Em torno dela se organizou toda a teoria do crescimento
exógeno, apesar da enigmática observação do próprio Solow de que era
“necessário muito mais do que uma bem-intencionada suspensão do espírito
crítico para falar, seriamente, de uma função de produção agregada”.
Devido à beleza, elegância e aparente fertilidade do modelo, todos
esquecemos os percalços menores.
Recentemente foi publicado um livro imperdível,
principalmente para aqueles que continuam a insistir na existência de
uma função de produção verticalmente integrada e a sonhar com a
possibilidade de calcular as contribuições “independentes” sobre o
crescimento econômico da produtividade total dos fatores (PTF), do
trabalho e do capital.
Trata-se do rigoroso The Aggregate Production Function and the Measurement of Technical Change: Note Even Wrong,
de Jesus Felipe e S. L. McCombie, dois competentes profissionais no
assunto. Nas suas quase 400 páginas escrutinizaram praticamente tudo o
que se escreveu sobre ele nos últimos 90 anos.
Com exemplos bem escolhidos e
simulações bem projetadas, expõem todas as falácias que se escondem nas
inexistentes funções de produção agregada. Os resultados das simulações
podem ser assim resumidos:
1. A PTF depende, nas funções de produção estimadas, dos pesos atribuídos ao crescimento do trabalho e do capital.
2. Quando é possível comparar o “verdadeiro” crescimento
do progresso tecnológico (nas equações microeconômicas) com os obtidos
através da regressão dos valores agregados, verifica-se que podem ser
muito diferentes (págs. 110/111).
Em resumo, existem funções de produção física na
microeconomia para cada empresa e para cada bem ou serviço, mas a sua
agregação exige condições muito difíceis de ser satisfeitas. A função de
produção verticalmente agregada é um “experimento cerebrino”
didaticamente interessante, mas que encontra pouca correspondência nas
regressões estimadas com funções construídas a partir de identidade de
valor agregado: Y = salário + lucro.
Como dizem os autores, “os conceitos de produtividade
total dos fatores e de função de produção agregada servem mais para
ofuscar do que iluminar o problema: Por que as taxas de crescimento
diferem entre os países? (pág. 209).
“Requiescat in pace”...
Por Delfim Netto
Nenhum comentário :
Postar um comentário