O QUE JUÍZES ESCANDINAVOS ACHAM
DAS MORDOMIAS QUE SEUS COLEGAS
NO BRASIL SE AUTOCONCEDEM
Goran Lambertz, da Suprema Corte sueca:
“Em minha opinião, é absolutamente inacreditável que juízes tenham o
descaramento e a audácia de serem tão egocêntricos e egoístas a ponto de
buscar benefícios como auxílio-alimentação e auxílio-escola para seus
filhos. Nunca ouvi falar de nenhum outro país onde juízes tenham feito
uso de sua posição a este nível para beneficiar a si próprios e
enriquecer”
O texto abaixo é da jornalista Claudia
Wallin, radicada na Suécia. Autora do livro Um país sem mordomias e
excelências, Claudia tocará o projeto especial sobre a vida na
Escandinávia para o DCM. Estamos nos momentos finais da arrecadação de
dinheiro que permita a investigação.
Ab ovo, desde o princípio dos tempos
ditos civilizados, quid latine dictum sit altum sonatur, tudo que é dito
em latim soa profundo nas egrégias Cortes da Justiça.
Mas hic et nunc, neste instante, os
linguistas mais perplexos com os atos de auto-caridade praticados pelo
Judiciário do Brasil já estarão se perguntando, data venia, se não é
chegada a hora de ampliar a definição do conceito de pornografia nos
dicionários brasileiros.
In ambiguo, na dúvida, vejamos: em uma
das maiores obscenidades já registradas em um mês das noivas, o Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro pediu e ganhou, em votação na Assembleia
Legislativa em maio, uma bolsa-educação de até R$ 2,86 mil mensais a fim
de bancar escolas e universidades particulares para filhos de juízes –
que além de receberem salário de cerca de R$ 30 mil contam com vantagens
como plano de saúde, auxílio-creche, auxílio-alimentação e carro com
motorista à disposição.
Ao bacanal de maio seguiu-se o projeto
do Supremo Tribunal Federal (STF) para a futura Lei Orgânica da
Magistratura (Loman), que prevê auxílios para magistrados ab
incunabulis, desde o berço até o caixão. Ganha uma toga quem adivinhar o
resultado da votação do projeto pelos representantes do Congresso, a
quem a dor dos vizinhos da praça dos poderes sempre parece incomodar.
O plano inclui o pagamento de até 17
salários por ano aos magistrados brasileiros, que deverão ter um leque
admirável de benefícios extras e garantidos até o túmulo: até a conta do
funeral dos juízes, conforme prevê a proposta do STF, será paga pelo
erário.
Entre os vivos, encenou-se a devassidão
de junho: os guardiões da lei do Rio Grande do Sul, que têm piso
salarial de R$ 22 mil, acabam de se autoconceder um auxílio-alimentação
de R$ 799 por mês.
Trata-se de um valor escandalosamente maior do que a maldita Bolsa Família (R$ 167,56 em média) dada aos pobres.
Como provavelmente não comeram nos
últimos quatro anos, as excelências do Sul decidiram também que o
pagamento do benefício deverá ser ex tunc, retroativo a 2011.
O indecoroso Bolsa Caviar contemplará
todos os juízes, desembargadores, promotores e procuradores, assim como –
suprema ironia – os conselheiros do Tribunal de Contas do Estado,
responsáveis pela fiscalização do uso do dinheiro dos impostos do
cidadão.
Tudo devidamente encaixado na categoria
de verba indenizatória, para ficar isento de imposto de renda: afinal, o
dinheiro público parece ser res nullius, coisa de ninguém.
Exempli gratia, por exemplo,
levantamento do jornal O Dia mostra agora que 90% dos juízes e
desembargadores do Rio de Janeiro receberam vencimentos que chegam a
estourar o teto permitido pela Constituição Federal.
Em janeiro, o contra-cheque de um juiz
chegou a registrar R$ 241 mil. Só em março, a folha de pagamento de
juízes e desembargadores fluminenses totalizou o equivalente a 50.279
salários mínimos.
E seguramente sem animus abutendi,
intenção de abusar, procurou-se também calibrar ainda mais os super
salários da magistratura brasileira juris et de jure, de direito e por
direito, no ano passado: foi quando os conselhos nacionais de Justiça e
do Ministério Público aprovaram o auxílio-moradia de até R$ 4.377 para
todos os juízes, desembargadores, promotores e procuradores do Brasil –
mesmo para quem já mora em imóvel próprio.
Cálculos aproximados estimam que o
impacto anual decorrente do benefício será de R$ 1 bilhão, nestes tempos
dourados de PIB gordo e pleno emprego no País das Maravilhas.
Há que se registrar as notáveis exceções
à promiscuidade, como por exemplo a postura do desembargador Siro
Darlan de Oliveira – que, ao se posicionar de forma veementemente
contrária ao auxílio-educação para filhos de juízes, foi afastado de
suas funções pelo Presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,
Luiz Fernando de Carvalho.
Mas quis custodiet ipsos custodes? – quem afinal vigia os vigias?
O fundamental respeito de uma sociedade
por seu Judiciário vai aos poucos, e perigosamente, sendo engavetado
como um processo de Geraldo Brindeiro.
Nas mídias sociais, a frase de um
internauta dá a medida do temerário grau de escárnio que cresce entre
tantos indignados com as benesses das Cortes: “Quando é que vai aparecer
uma operação Lava-Toga”?
Recomendam o bom senso e a razão o graviter facere nos tribunais – agir com prudência, moderação, gravidade.
Decido ad judicem dicere, falar com um
juiz, aqui na Suécia. Telefono então para Göran Lambertz, um dos 16
integrantes da Suprema Corte sueca, para contar as últimas novidades da
corte brasileira.
Lambertz é aquele juiz que pedala todos
os dias até a estação central, e de lá toma um trem para o trabalho – e
que me disse há tempos, em vídeo gravado para a TV Bandeirantes, que
luxo pago com dinheiro do contribuinte é imoral.
Quando descrevo a nova lista de
benefícios dos juízes brasileiros, Göran Lambertz dispensa totalmente,
para meu espanto, a tradicional reserva e a discrição que caracteriza o
povo sueco.
“Em minha opinião, é absolutamente
inacreditável que juízes tenham o descaramento e a audácia de serem tão
egocêntricos e egoístas a ponto de buscar benefícios como
auxílio-alimentação e auxílio-escola para seus filhos. Nunca ouvi falar
de nenhum outro país onde juízes tenham feito uso de sua posição a este
nível para beneficiar a si próprios e enriquecer”, diz Lambertz.
Com o cuidado de avisar que não se trata
de um trote, telefono em seguida para o sindicato dos juízes suecos, o
Jusek, e peço para ouvir as considerações de um magistrado sindicalizado
acerca da última série de benefícios autos-concedidos a si próprios
pelos magistrados brasileiros – o Bolsa Moradia, o Bolsa Educação, o
Bolsa Alimentação.
Sim, existe um sindicato dos magistrados
na Suécia. É assim que os juízes suecos, assim como os trabalhadores de
qualquer outra categoria, cuidam da negociação de seus reajustes
salariais.
Meu telefonema é transferido então para o celular do juiz Carsten Helland, um dos representantes da categoria no sindicato.
Sinto um impulso incontrolável de dizer a
ele que fique à vontade para recusar o colóquio e bater impiedosamente o
telefone como bate seu martelo na Corte, pois os fatos que vai ouvir
podem provocar sensações indesejáveis de regurgitação neste horário
inconveniente que antecede o almoço do magistrado.
Mas, como que invadida pela cegueira da
Justiça, decido narrar de vez ao juiz, sem clemência nem advertência,
todos os obscenos benefícios pedidos e concedidos aos colegas
brasileiros no além-mar.
Para minha surpresa, o magistrado sueco dedica os segundos iniciais da sua resposta a uma sessão de risos de incredulidade.
“Juízes não podem agir em nome dos
próprios interesses, particularmente em tamanho grau, com tal ganância e
egoísmo, e esperar que os cidadãos obedeçam à lei”, diz enfim o juiz,
na sequência da risada que não pôde ou não quis evitar.
Recobrado o equilíbrio e a compostura que a toga exige, Carsten Helland continua:
“Um sistema de justiça deve ser justo”,
ele começa, constatando o óbvio com a fala didática de quem tenta se
comunicar com uma criatura verde de outro mundo.
“As Cortes de um país são o último posto
avançado da garantia de justiça em uma sociedade, e por essa razão os
magistrados devem ser fundamentalmente honestos e tratar os cidadãos com
respeito. Se os juízes e tribunais não forem capazes de transmitir esta
confiança e segurança básica aos cidadãos, os cidadãos não irão
respeitar o Judiciário. E consequentemente, não irão respeitar a lei”,
enfatiza o juiz sueco.
Pergunto a Carsten o que aconteceria na
Suécia se os juízes, em um louco delírio, decidissem se auto conceder
benefícios como um auxílio-alimentação.
“Acho que perderíamos o nosso emprego”,
ele diz, entre novo surto de risos. “Mas é simplesmente impossível que a
aprovação de benefícios como auxílio-alimentação ou auxílio-moradia
para magistrados aconteça por aqui”.
Por quê?
“Porque não temos esse tipo de sistema
imoral. Temos um sistema democrático, que regulamenta o nível salarial
da categoria dos magistrados, assim como dos políticos. E temos uma
opinião pública que não aceitaria atos imorais como a concessão de
benefícios para alimentar os juízes à custa do dinheiro público. Os
juízes suecos não podem, portanto, sequer pensar em fazer coisas desse
gênero”, conclui Carsten Helland.
O juiz Helland: “É simplesmente
impossível que a aprovação de benefícios como auxílio-alimentação ou
auxílio-moradia para magistrados aconteça por aqui. Não temos esse tipo
de sistema imoral. Temos um sistema democrático, que regulamenta o nível
salarial da categoria dos magistrados, assim como dos políticos. E
temos uma opinião pública que não aceitaria atos imorais como a
concessão de benefícios para alimentar os juízes à custa do dinheiro
público”
O salário médio bruto de um juiz na
Suécia é de cerca de 60 mil coroas suecas, o que equivale a
aproximadamente 22,3 mil reais. O valor equivale ao salário de um
deputado sueco, que em termos líquidos representa cerca de 50% a mais do
que ganha um professor do ensino fundamental. O salário médio no país é
de 27,3 mil coroas suecas.
“Há uma pequena variação nos salários
dos magistrados suecos, que se situam em uma faixa entre 50 mil a 63 mil
coroas suecas”, diz o juiz.
Há algum outro tipo de benefício além do salário?
“Não, absolutamente não” – ele responde.
A negociação anual dos reajustes
salariais da magistratura se dá entre o sindicato Jusek e o
Domstolsverket, a autoridade estatal responsável pela organização e o
funcionamento do sistema de justiça sueco.
Para entender o sistema sueco, diz o juiz Helland, é preciso olhar um século para trás.
“A partir do final do século XIX, os
sindicatos desempenharam um papel fundamental na construção da sociedade
que temos hoje. Portanto, não é estranho ver magistrados ou qualquer
outro profissional na Suécia sendo filiados a sindicatos. E é importante
notar que ser membro de um sindicato, na Suécia, não significa que você
seja de esquerda. Os sindicatos são parte essencial da base sobre a
qual nossa sociedade foi consolidada – a dualidade entre trabalhadores e
empregadores”, ele observa.
O reajuste salarial dos magistrados
suecos trata normalmente, segundo o juiz, da reposição da perda
inflacionária acumulada no período de um ano, e que se situa em geral
entre 2% e 2,5%.
“Nossos reajustes seguem geralmente os
índices aplicados às demais categorias de trabalhadores, que têm como
base de cálculo os indicadores gerais da economia e parâmetros como o
nível de aumento salarial dos trabalhadores do IF Metall (o poderoso
sindicato dos metalúrgicos suecos)”, explica o juiz Carsten.
A negociação depende essencialmente do orçamento do Domstolsverket, que é determinado pelo Ministério das Finanças:
“Os juízes têm influência limitada no
processo de negociação salarial”, diz Carsten. “As autoridades estatais
do Domstolsverket recebem a verba repassada pelo governo, através do
recolhimento dos impostos dos contribuintes, e isso representa o
orçamento total que o governo quer gastar com as Cortes. A partir deste
orçamento, o Domstolsverket se faz a pergunta: quanto poderá gastar com o
reajuste salarial dos juízes?”, explica o juiz.
“Não podemos, portanto, lutar por salários muito maiores. Podemos apenas querer que seja possível ganhar mais”, acrescenta ele.
Greves de juízes não fazem parte da ordem do dia.
“Não fazemos greves, porque isso seria evidentemente perigoso para a sociedade”, diz Helland.
Já sei a resposta, de tanto fazer a
mesma pergunta a jornalistas e a suecos em geral, mas resolvo perguntar
mais uma vez: já ouviu falar de algum caso registrado de juiz corrupto
na Suécia?
“Não”, diz Helland. “Nunca”.
Na Suprema Corte sueca, os reajustes salariais também seguem a mesma regra aplicada ao restante da magistratura.
O salário bruto dos juízes do Supremo,
segundo Goran Lambertz, é de 100 mil coroas suecas (cerca de 37 mil
reais). Uma vez descontados os impostos, os vencimentos de cada juiz
totalizam, in totum, um valor líquido de 55 mil coroas suecas
(aproximadamente 20,4 mil reais). Sem nenhum benefício ou penduricalho
extra, e sem carros com motorista.
Neste exótico país, os juízes da Suprema Corte também não têm status de ministro, e nem são chamados de excelências.
“Se o sistema judiciário de um país não
for capaz de obter o respeito dos cidadãos, toda a sociedade estará
ameaçada. Haverá mais crimes, haverá cada vez maior ganância na
sociedade, e cada vez menos confiança nas instituições do país. Juízes
têm o dever, portanto, de preservar um alto padrão moral e agir como
bons exemplos para a sociedade, e não agir em nome de seus próprios
interesses”, diz Göran Lambertz ao final da nossa conversa.
Ou em bom latim, conforme rezam os manuais jurídicos: nemo iudex in causa sua – ninguém pode ser juiz em causa própria.
Fonte: Claudia Wallin
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