quarta-feira, 17 de junho de 2015

HÁ PRIORIDADES ALÉM DO AJUSTE
O maior problema de parte da sociedade brasileira é a sua indisposição de aceitar as restrições impostas pelo mundo físico no qual ela tem de viver, simplesmente porque não há outra opção. Não se impõe uma “ortodoxia” ou uma particular “visão do mundo” quando se afirma, por exemplo, que seja qual for a sociedade, “capitalista” ou “socialista real”, é impossível violar as identidades da contabilidade nacional. A história é testemunha de que, em ambas, a tentativa de fazê-lo leva, no fim do dia, a uma situação trágica que promove: 

1. A redução do crescimento econômico. Na organização “capitalista”, conduz a uma rápida queda do emprego e do salário real. Na “socialista real”, a um empobrecimento geral talvez maior, mas distribuído de modo mais equânime.

2. O aumento, na sociedade “capitalista”, da dificuldade para prosseguir na necessária política de igualdade de oportunidades num “ambiente” de relativa liberdade de iniciativa. Na “socialista real”, por definição (mas não na realidade), já são todos iguais, mas com liberdade controlada.

3. A aceleração da inflação no “capitalismo” e o aumento da inflação “escondida” pelo racionamento no “socialismo real”, destruindo ainda mais a liberdade de escolha do consumidor.

4. No “capitalismo”, déficits no balanço em conta corrente, o que leva ao aumento da taxa de câmbio real para corrigi-lo e acentua a dificuldade crescente de controlar a inflação.

No “socialismo real”, provoca o aumento dos problemas de abastecimento da demanda e ao controle do câmbio, o que prejudica a exportação. Levado ao limite, o processo termina quando não há mais financiamento externo. Tudo isso bem temperado – nos dois regimes – com um bom desequilíbrio fiscal. Como as consequências sempre chegam depois, mais cedo (no “capitalismo”) ou mais tarde (no “socialismo real”), uma correção terá de ser imposta.

Parece que caiu a ficha. O governo federal, que estava aparentemente perdido, concentrado apenas na defesa do necessário “ajuste fiscal”, tenta recuperar a iniciativa com bons projetos de concessões e estimular as exportações, revelando que há prioridades além dele. Começou com o excelente Plano de Safra para a 2015-2016, lançado no dia 2. A competente ministra Kátia Abreu mostrou a que veio. Os agricultores revelaram seu apoio por meio das lideranças mais representativas. Afinal, são quase 190 bilhões de reais alocados ao setor para custeio, investimento e comercialização da safra 2015-2016.

Houve um pequeno aumento da taxa de juros real, mas ela ainda continua muito próxima de zero, o que significa uma redução do subsídio. Isso revela a preocupação com o equilíbrio fiscal, que foi compensada com um aumento de 20% na alocação de recursos ao setor quando comparado com a safra 2014-2015. Continua o apoio à integração lavoura-pecuária-floresta, à agricultura de baixo carbono e ao Moderfrota. Deu sinais de que o governo entendeu a tragédia produzida no setor sucroalcooleiro e tenta reavivá-lo. O único senão foi a redução do avanço do seguro rural, que cresceu quase 20% ao ano no primeiro mandato de Dilma. É uma pena, porque seu custo é pequeno diante dos benefícios que produz. Em compensação, a coordenação revelada pelas decisões simultâneas do Banco Central garantirá a fluidez do crédito na hora certa.

O Plano de Safra de 2015-2016 é muito bom. Esperemos que seja o primeiro sinal de que o governo sairá da defensiva e dará ênfase ao fato de o “ajuste fiscal” ser apenas a preliminar de um jogo cujo objetivo é a construção da sociedade civilizada inscrita na Constituição de 1988. Nela, é o Poder Executivo forte, e por ela regulado, que tem o protagonismo da agenda nacional, respeitando a coordenação e a harmonia com o Legislativo e o Judiciário. Não há, portanto, como aceitar que estes promovam aumento de despesa sem se responsabilizarem pelo aumento simultâneo de receita não fictícia para pagá-las. Da mesma forma, é inaceitável o Executivo promover despesa permanente financiada com receita aleatória ou contabilidade “criativa”.

Nossa crise não existiria se ouvíssemos o conselho do ex-presidente Dutra: “Obedeçam ao livrinho, senhores. Apenas o livrinho”.

Fonte: CartaCapital
Por Delfim Netto 

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