domingo, 26 de dezembro de 2010

POR IVAN LIRA DE CARVALHO*


 QUANDO A LITERATURA VAI À PRAIA


            Coloquei uma cunha no meu tempo, abrindo-o entre um compromisso acadêmico e o retorno ao labor funcional, de modo a poder fruir da Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas (FLIPORTO), engenho do escritor pernambucano Antonio Campos, que já tomou forma e prestígio neste e noutros países, agora na sua quarta edição. Lançando mão da mesma fonte que inspira a sua similar que anualmente é realizada em Parati-RJ,  é dizer, a literatura, tem a grande virtude de não circunscrever o evento a um mero entreposto de livros ou de outros impressos, embora estes tenham posição de destaque. Vai bem mais além, propiciando a realização de palestras, encenações, show musicais, saraus declamatórios, mostra de cine-vídeo e muita discussão acerca da história e dos rumos da produção cultural do nosso país e dos visitantes, pois o subtítulo do genial furdunço foi “Trilhas da Diáspora: Literatura em África e América Latina”, espelhando o liame entre as letras do Brasil, as dos hermanos países de língua espanhola e as da Mãe-Preta aí da frente, muitas braças além-mar.

            Gente muita, daqui de alhures, como dizem os pedantes. Festa de cor – na variação cromática da pele dos participantes e no vestir de todos – e de inteligência, esta última não obrigatoriamente a serviço da cultura formal, “on the books”. Umas rodas de declamação na beira-praia faziam contraponto com algumas exposições e debates levados a efeito em salas com adequação acústica e refrigeração precisa.

            Formalmente o evento marcou o centenário de nascimento de Josué de Castro e de Solano Trindade, tão diferentes no formato e tão iguais na essência. Pernambucanos, negros de raiz familiar e dedicados às coisas da sua gente. O primeiro, o Castro, um humanista de refinada educação, formado em Medicina e dedicado ao estudo das causas e dos efeitos da pobreza e, por conseqüência, da fome. Escreveu obras até hoje atuais, como “Geopolítica da Fome” e “Geografia da Fome” e levou as denúncias sobre a condição sub-humana dos habitantes das quadras pobres do planeta ao parlamento brasileiro (foi Deputado Federal) e à Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), de cujo Conselho foi presidente de 1952 a 1956. Tendo sido também embaixador do Brasil junto à ONU, foi indicado por duas vezes ao Prêmio Nobel da Paz. As suas frases tinham um gume de navalha, solto e bamboleante na cara das elites. Para mim, uma das mais significativas: “Metade da população brasileira não dorme porque tem fome e a outra metade não dorme com medo da metade que tem fome.”.

            O outro saudado foi Solano Trindade, nadica de acadêmico, que foi em verdade um multiartista, um agitador cultural: escrevia, pintava, representava, compunha, organizava os negros em associações e, sobretudo, era um boêmio que fazia da sua intimidade com Baco uma oportunidade de expansão da sua produção artística. Fez das suas – boas – no Recife e danou-se para o Rio, onde deitou e rolou, inclusive fundando o Teatro Experimental do Negro (com Abdias Nascimento). Achou pouco e mandou-se para Embu, São Paulo, para dar régua e compasso ao grande agito artístico do lugar, hoje retratado no próprio topônimo (“Embu das Artes”).

            Só testemunhar a homenagem que se prestou a esses dois importantes brasileiros já pagaria a minha participação na FLIPORTO. Mas teve mais... muito mais.

* Ivan Lira de Carvalho É Professor da UFRN e Juiz Federal – ivanlira6@uol.com.br

 Enviado por José Romero Cardoso 




Um comentário :

Ivan Lira de Carvalho disse...

O texto QUANTO A LITERATURA VAI À PRAIA foi publicado originalmente no Diário de Pernambuco, em novembro de 2008, logo após a ralização da FLIPORTO daquele ano. O registro que aqui faço é imprescindível para fins de contextualização.