AOS 86 ANOS, CARLOS HEITOR CONY
FAZ UMA REVISÃO AMARGA
E IRÔNICA DA VIDA
Com as pernas enfraquecidas pelo câncer, Cony acaba de ir a Nova York.
O Globo/Ana Branco
RIO - Os passeios na Lagoa acabaram: um câncer linfático crônico,
considerado terminal há 11 anos, e que afetou a força de suas pernas, o
obriga a passeios modestos, dentro de casa, com fisioterapeutas. Mas
quando vai à rua, na condição de cadeirante, Carlos Heitor Cony, 86
anos, não vê limites: viaja para palestras, vai a Nova York e visita o
Marco Zero. E não descarta futuras viagens de navio. Fumante de quatro
charutos por dia, lê, escreve suas crônicas para a "Folha de S. Paulo" e
participa de debates matinais com Artur Xexéo na CBN. Há um ano, não
vai à Academia Brasileira de Letras (ABL) e não pretende voltar à
ficção, como tantos fãs esperam. O que não o impede de dissertar, horas
seguidas, sobre o relançamento de "Memorial do exílio" (Bloch Editores,
1982), com novo título, "JK e a ditadura", agora pela Editora Objetiva.
Nesta entrevista, o ceticismo de sempre dá espaço a sorrisos entre o
diabólico e o abençoado que o tornam uma das figuras mais carismáticas
da literatura brasileira.
O GLOBO - Por ser uma espécie de autobiografia em terceira pessoa, "JK e a ditadura" é carente de um viés crítico. Ele existe?
Deveria
ser o terceiro volume de sua autobiografia, mas ele morreu. Sim, tenho
minhas restrições a Juscelino, em que pese o carinho e a admiração por
sua obra. Ele se vendeu como democrata irredutível, mas pressionava o
Congresso. Por exemplo, quando pediu licença para processar Carlos
Lacerda por vazar informações do Itamaraty, jogou pesado para cima da
Câmara na intenção de cassar o adversário. Não conseguiu. Mas comprou
voto, constrangeu a imprensa, o diabo a quatro, como todo mundo faz, na
base do fisiologismo. Politicamente, errou feio ao apoiar Humberto
Castelo Branco em troca da promessa de respeitar o pleito de 1965, o que
não aconteceu. A jogada de mestre teria sido renunciar à candidatura em
favor do (general Eurico Gaspar) Dutra, um pessedista de 90 anos que
estava na lista dos preferidos dos militares e lhe era leal. Dutra ia
corrigir os rumos e acalmar os radicais. Uma vez ele me perguntou onde
foi que pegou a curva errada, e eu disse isso.
Mas isso seria suficiente para neutralizar a hidra da ditadura?
Seria
a chance de evitar um quadro tão violento. Além disso, uma falta menos
grave: JK mentia sobre a idade. Dizia, no primeiro volume das memórias,
que nasceu em Diamantina em 1902. Tenho a certidão de nascimento: o ano
correto é 1900. O então repórter Roberto Muggiati chegou a ser demitido
por ter publicado na "Manchete" a idade certa: JK reclamou com o patrão.
Interferi a seu favor e ele acabou "exilado" atrás de uma coluna da
redação. Dois anos depois, virou diretor da revista.
E o aspecto programático?
A
questão de JK sempre foi mesmo a indústria. Getúlio Vargas fez
legislação trabalhista sem um tiro e a sociedade, inclusive o
empresariado, aceitou. Mas Getúlio não menciona a questão da terra. Se
mexesse na terra, seria deposto. JK também foi avesso a essa questão.
Mas, com o que fez, transformou a sociedade brasileira e a levou a outro
patamar.
A segunda parte do livro, espécie de apêndice,
reedita trechos de "O Anjo da Morte", reforçando a tese de assassinato
de Juscelino. Você realmente acredita nisso?
Os indícios
são todos nesse sentido. Guilherme Romano, braço direito de Golbery (do
Couto e Silva), foi o primeiro a aparecer no local. O pouso onde ele
parou pertencia a militares e JK vivia sendo seguido. A notícia da morte
por acidente correu dias antes. E, em telegrama ao general (João
Batista) Figueiredo, o chefe da Dina, o SNI chileno, equipara Letelier,
assassinado pela CIA, a JK, como "um problema para o Brasil", num tempo
em que o presidente Jimmy Carter ouviu de (Ernesto) Geisel que, antes da
redemocratização, ainda estava em vias uma "limpeza de terreno". Sei
que indícios não são provas, embora tenha ouvido o (ex-ministro do STF
Cezar) Peluso dizer que existe a "prova indicial". Miro Teixeira chegou a
criar uma comissão para apurar as circunstâncias. Todos os depoentes
afirmaram isso. O último foi Miguel Arraes, grande articulador da
resistência à Operação Condor, que assim se pronunciou: "JK foi
assassinado."
Em 1968, você foi preso na mesma leva que deteve JK. O que guarda desse episódio?
Foi
na noite de 3 de dezembro, até depois do carnaval. Três meses. Quando
fui sequestrado, ouvi que naquela noite iam fuzilar JK. Incomunicável,
acreditei, aquele tempo todo, que havia um paredão. Não fui torturado,
mas em muitas noites vomitei ao ouvir berros e pancadas das outras
celas. Fiquei numa cela miserável, com um cano de água, que usava para
escovar os dentes, e um vaso sanitário. Esta foi a segunda prisão. No
total, foram seis. Em 1965, quando ainda havia legalidade, fui
processado por (Artur da) Costa e Silva, que, pela Lei de Segurança
Nacional, queria me botar 30 anos em cana. O STF transferiu para Lei de
Imprensa e peguei seis meses. Cumpri três: foi a única vez na vida que
tive bom comportamento. Os militares ainda eram educados. Invoquei a
convenção de Genebra e a comida melhorou, ganhei banho de sol e lençóis,
e, no Natal, um coronel nos mandou peru, vinho, farofa e castanhas, da
casa do comandante.
Você foi muito atacado quando recebeu benefícios como reparação aos danos. Isso o magoou?
Vou
contar só um episódio. Quando, em abril de 1964, escrevi, no "Correio
da Manhã", o artigo "A revolução dos caranguejos", que atacava
violentamente o movimento militar, tive que me esconder. No dia da
publicação, três sujeitos foram à escola de minhas filhas, que tinham 12
e 8 anos, e disseram à professora que vinham buscá-las, que eram amigos
dos pais e precisavam protegê-las pois estavam sob ameaça de sequestro.
À saída, a dona do colégio, ao ver duas alunas com três homens
estranhos à paisana, pediu documentos. Eles se recusaram a mostrar e
puseram minhas filhas num carro. A mulher anotou a placa e nos procurou.
Ênio Silveira, que tinha contatos, fez a coisa circular em meios
militares e descobriu-se que o carro servia a um oficial da Marinha.
Elas foram soltas aos empurrões. Durante o sequestro, haviam sido
ameaçadas e insinuaram que tirariam, naquela noite, a sua virgindade. O
resto são tecnicalidades que nem preciso mencionar, além do fato de os
desembargadores nem terem lido o processo por serem contemporâneos e
saberem o que passei. Mas nem se me dessem a Petrobras eu me sentiria
compensado. Nem a Amazônia pagaria todo o meu sofrimento.
Por que sua aversão a livros inéditos de ficção? Você desistiu?
Olha,
com "Pilatos", livro da década de 1970, eu disse tudo o que queria
dizer. Thomas Mann, depois de escrever "Doutor Fausto", pensou em não
escrever mais. E disse: "Infelizmente, vivi mais que minha obra." Teve
que escrever ainda três ou quatro livros, tudo porcaria, pois precisava
de dinheiro. Quando fiz "Pilatos" foi isso: fiquei 23 anos sem escrever.
Aí veio o computador, e a doença de minha cadela Mila, eu escrevi
"Quase memória" para suportar o sofrimento de ouvir seus gemidos.
"Quase memória" não é bom?
É um desabafo. O que escrevi depois foi por pura pressão comercial. Nada desse período interessa.
Como é sua rotina hoje?
Tenho
um câncer linfático e estou em estado terminal há 11 anos. É o mesmo
câncer da Dilma e do (Reynaldo) Gianecchini. Não perdi o cabelo, mas o
tratamento enfraqueceu minhas pernas. O câncer, porém, não é mais a tal
da insidiosa moléstia. Todo mundo tem um. A Hebe, a Ana Maria Braga,
todos os líderes do Cone Sul, Lula, Fidel, Chávez, Cristina! Há 12 dias
não saio de casa. Meses atrás fui a Nova York. Para visitar os museus,
ser cadeirante é bom: fui tratado como príncipe, uma maravilha. No Marco
Zero me puseram de cuecas para entrar.
Em "JK e a
ditadura" você diz que, com a Frente Ampla, JK, (Carlos) Lacerda e Jango
(João Goulart) provaram, tardiamente, que a Humanidade pode ser melhor
desde que cada homem procure, no outro, o seu melhor. Você acredita
nisso? Precisamos de homens cordiais, como JK?
Não. Em "O
ventre", aos 32 anos, eu digo que só creio naquilo que pode ser
atingido pelo meu cuspe. Como disse no meu discurso de posse na ABL, não
tenho convicções firmes para ser de direita, disciplina para ser de
esquerda nem a imobilidade do centro, que é oportunista. Sou um
anarquista inofensivo.
A Academia foi uma concessão, em vistas desse ceticismo?
Entrei
com 74 anos, idade com que morreu o JK. Desde 1964 já me haviam
convidado. Acabaram me convencendo num movimento para legitimar a
candidatura paralela, para outra vaga, de Roberto Campos, que até o
Celso Furtado queria. Acabei cedendo, sob a condição de não fazer
campanha. A Academia é um ambiente de cordialidade. Resumindo, porém, eu
diria que é uma espécie de jardim de infância às avessas. No jardim de
infância você não tem passado mas um futuro o espera, com relações novas
e amigos vindouros. Na academia, não temos futuro. Temos todos um
passado, se é que temos, bom, brilhante ou medíocre, mas 90% dos que lá
estão não têm mais nada para fazer na vida. O futuro é o mausoléu.
Você tem medo da morte?
Não,
a não ser do ritual da morte. Não quero velório. Nem quero ir para o
mausoléu da Academia. Serei cremado. Toda a liturgia da morte hoje é uma
contrafação, fria, impessoal. Já conquistei o que queria. Só me restam o
Nobel e a morte. Como o Nobel não virá...
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