A SOCIEDADE CIVILIZADA
Há 74 anos, com 14, fui trabalhar, como office-boy
na Companhia Gessy Industrial. Criada por um inteligente imigrante
italiano fabricava, em 1942, produtos de higiene pessoal que competiam
bem com os das concorrentes estrangeiras aqui instaladas. Os tempos eram
lentos. A única comunicação direta com os clientes era por meio da
correspondência escrita, sujeita às vicissitudes do velho Correio
nacional. A qualidade e a precisão da comunicação da empresa com seus
compradores eram, assim, absolutamente decisivas para o seu sucesso.
Na Gessy, tive a sorte de trabalhar com o
correspondente-chefe que garantia aquela interlocução, o senhor Ayrton
Alves Aguiar, um verdadeiro “triple A”! Cultura aberta (médico sem
exercer a profissão), generoso, crente da objetividade da ciência, era
um libertário que beirava o anarquismo. Cultivava o socialismo
“enrustido” da Coleção Espírito Moderno. Dirigida por Anísio Teixeira e
Monteiro Lobato, publicava obras de socialistas “fabianos”, como H.G.
Wells, que ele me convenceu a ler. Cheguei assim, aos 17 anos, um
convicto “socialista fabiano”, com a certeza de que era possível
construir uma sociedade melhor onde houvesse liberdade individual e
relativa igualdade, desde que fosse gerida por uma burocracia
esclarecida e generosa num regime de propriedade coletiva dos meios de
produção.
Não me lembro de qualquer menção, naquela literatura, de
como na tal sociedade se coordenariam os desejos de milhões de
consumidores livres, com a ação de milhões de agentes estatais que
deveriam produzir os bens que os satisfariam. Em 1948, no primeiro ano
do curso de Economia da FEA-USP, provocado por meu exibicionismo, o
ilustre professor Paul Hugon, pacientemente, abalou as minhas crenças.
Explicou os problemas daquela coordenação estudados por economistas
entre 1920 e 1930 e chamou a minha atenção para Marx,
que os fabianos detestavam por sua “metafísica”, que se esquivara do
problema com uma platitude: “De cada um de acordo com suas habilidades e
para cada um de acordo com as suas necessidades”...
É difícil entender a deliberada
ignorância desse problema diante do fracasso de centenas de experiências
pioneiras na construção de sociedades inspiradas nos pensamentos
socialistas de Robert Owen e Charles Fourier, por exemplo.
É perigoso generalizar, mas todas começaram com fervor quase religioso de abdicação, altruísmo
e esperança. E todas terminaram muito mal, quer por pressões externas,
quer porque a prática mostrou que a coordenação das atividades
autogeridas encontra dificuldades cuja solução exige alguma
hierarquização, e isso desperta forças desagregadoras. Nunca foram
comunidades importantes. A macroexperiência foi apoiada no pensamento de
Marx. Começou como a esperança de libertação da humanidade, sob a
admiração quase unânime da inteligência internacional: a construção de
Lenin na Rússia. Terminou, também, de forma trágica. Mesmo com o poder
absoluto durante 70 anos, não foi capaz de resolver o velho problema da
coordenação.
Talvez já seja tempo de deixar de lado a busca do grande
sonho da sociedade “perfeita” e reconhecer a possibilidade de construção
de uma sociedade “civilizada” mais modesta, que atenda a pelo menos
três condições: 1. Dar a todos a plena liberdade para realizar as suas potencialidades. 2.
Igualizar as oportunidades de cada um, reduzindo o acidente do local de
seu nascimento e mitigando as transferências de poder intergeracional
que a acumulação da riqueza confere. 3. Resolver o problema da
coordenação por meio de um Estado forte, constitucionalmente controlado,
capaz de regular o bom funcionamento dos mercados, o que, com sólidas
instituições, permite uma “acomodação” da liberdade com a igualdade e a
eficiência produtiva, valores não inteiramente compatíveis.
Os “mercados”
estão longe de ser perfeitos. São uma construção do homem – um
instrumento – que resolve de forma satisfatória o problema da
coordenação, aumenta a produtividade do trabalho e reduz o tempo que ele
precisa para atender à sua subsistência material, o que lhe dará cada
vez mais tempo livre para realizar a sua humanidade.
Fonte: CartaCapital
Por Delfim Netto
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