terça-feira, 25 de outubro de 2016

A SOCIEDADE CIVILIZADA
Há 74 anos, com 14, fui trabalhar, como office-boy na Companhia Gessy Industrial. Criada por um inteligente imigrante italiano fabricava, em 1942, produtos de higiene pessoal que competiam bem com os das concorrentes estrangeiras aqui instaladas. Os tempos eram lentos. A única comunicação direta com os clientes era por meio da correspondência escrita, sujeita às vicissitudes do velho Correio nacional. A qualidade e a precisão da comunicação da empresa com seus compradores eram, assim, absolutamente decisivas para o seu sucesso.

Na Gessy, tive a sorte de trabalhar com o correspondente-chefe que garantia aquela interlocução, o senhor Ayrton Alves Aguiar, um verdadeiro “triple A”! Cultura aberta (médico sem exercer a profissão), generoso, crente da objetividade da ciência, era um libertário que beirava o anarquismo. Cultivava o socialismo “enrustido” da Coleção Espírito Moderno. Dirigida por Anísio Teixeira e Monteiro Lobato, publicava obras de socialistas “fabianos”, como H.G. Wells, que ele me convenceu a ler. Cheguei assim, aos 17 anos, um convicto “socialista fabiano”, com a certeza de que era possível construir uma sociedade melhor onde houvesse liberdade individual e relativa igualdade, desde que fosse gerida por uma burocracia esclarecida e generosa num regime de propriedade coletiva dos meios de produção.

Não me lembro de qualquer menção, naquela literatura, de como na tal sociedade se coordenariam os desejos de milhões de consumidores livres, com a ação de milhões de agentes estatais que deveriam produzir os bens que os satisfariam. Em 1948, no primeiro ano do curso de Economia da FEA-USP, provocado por meu exibicionismo, o ilustre professor Paul Hugon, pacientemente, abalou as minhas crenças. Explicou os problemas daquela coordenação estudados por economistas entre 1920 e 1930 e chamou a minha atenção para Marx, que os fabianos detestavam por sua “metafísica”, que se esquivara do problema com uma platitude: “De cada um de acordo com suas habilidades e para cada um de acordo com as suas necessidades”...

É difícil entender a deliberada ignorância desse problema diante do fracasso de centenas de experiências pioneiras na construção de sociedades inspiradas nos pensamentos socialistas de Robert Owen e Charles Fourier, por exemplo.

É perigoso generalizar, mas todas começaram com fervor quase religioso de abdicação, altruísmo e esperança. E todas terminaram muito mal, quer por pressões externas, quer porque a prática mostrou que a coordenação das atividades autogeridas encontra dificuldades cuja solução exige alguma hierarquização, e isso desperta forças desagregadoras. Nunca foram comunidades importantes. A macroexperiência foi apoiada no pensamento de Marx. Começou como a esperança de libertação da humanidade, sob a admiração quase unânime da inteligência internacional: a construção de Lenin na Rússia. Terminou, também, de forma trágica. Mesmo com o poder absoluto durante 70 anos, não foi capaz de resolver o velho problema da coordenação.

Talvez já seja tempo de deixar de lado a busca do grande sonho da sociedade “perfeita” e reconhecer a possibilidade de construção de uma sociedade “civilizada” mais modesta, que atenda a pelo menos três condições: 1. Dar a todos a plena liberdade para realizar as suas potencialidades. 2. Igualizar as oportunidades de cada um, reduzindo o acidente do local de seu nascimento e mitigando as transferências de poder intergeracional que a acumulação da riqueza confere. 3. Resolver o problema da coordenação por meio de um Estado forte, constitucionalmente controlado, capaz de regular o bom funcionamento dos mercados, o que, com sólidas instituições, permite uma “acomodação” da liberdade com a igualdade e a eficiência produtiva, valores não inteiramente compatíveis.

Os “mercados” estão longe de ser perfeitos. São uma construção do homem – um instrumento – que resolve de forma satisfatória o problema da coordenação, aumenta a produtividade do trabalho e reduz o tempo que ele precisa para atender à sua subsistência material, o que lhe dará cada vez mais tempo livre para realizar a sua humanidade. 

Fonte: CartaCapital
Por Delfim Netto 
 

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