O CAPITALISMO E
SEUS CONFORMADOS
A economia
deve acolher os vários mundos potencialmente possíveis, produtos de
“visões” humanas diferentes. Não se restringe apenas à análise objetiva
que tende a tomar o “mundo” como este lhe parece. Isso dá origem a pelo
menos duas aproximações do problema.
De um lado, os “conformistas”, que tomam o mundo
como é, apesar de achá-lo injusto. Recomendam uma política econômica (o
exercício “prático” do conhecimento “teórico”) para administrá-lo
melhor, confiando que o respeito às restrições físicas e o empoderamento
da sociedade, através do sufrágio universal, é o caminho mais eficaz
para uma sociedade civilizada.
De outro, os “inconformados”, que acham inútil tentar
consertar uma organização essencialmente injusta. Sugerem
“curtos-circuitos” para o socialismo “ideal”.
Ignoram que as tentativas de instalar o socialismo “ideal”, quando
adquiriu concretude no socialismo “real”, revelou-se um dos desastres
que marcarão o século XX.
Levou à completa aniquilação da liberdade individual,
construiu “castas” (o partido portador da “verdade” e a canalha que não a
vê) e terminou na mais completa ineficiência produtiva, pela
centralização das decisões econômicas sem um mecanismo aceitável e
funcional para coordenar as atividades que proporcionam a sobrevivência
material da sociedade.
Os “conformados” dividem-se, basicamente,
em duas “escolas”, os ortodoxos e os heterodoxos. Uma divisão de
conveniência e não estável. Há uma tendência da ortodoxia de, a pouco e
pouco, depois do controle empírico incontornável, ir absorvendo o que
sobrou das novidades heterodoxas e incorporá-las. É grave imprudência,
portanto, desconsiderar as visões alternativas que sempre se apresentam.
Da mesma forma que a esquerda inteligente num ambiente de genuíno sufrágio universal foi, e é, um poderoso instrumento de domesticação do “capitalismo”,
uma heterodoxia diligente, que põe à prova, com novos argumentos e
pesquisa empírica, as “verdades” da ortodoxia, é o caminho do seu
aperfeiçoamento.
A ortodoxia deve mesmo ser o reservatório das “verdades”
ainda não rejeitadas. Isso nada tem de estranho. É apenas a marcha
natural do conhecimento: o permanente desafio à “verdade” estabelecida,
submetendo-a, continuadamente, às novas interpretações e às novas
evidências.
Mas é preciso dizer com firmeza que, a despeito de todas
as dificuldades, existe um sólido patrimônio de conhecimentos organizado
e materialmente útil, acumulado na disciplina Economia, para promover o
desenvolvimento social e econômico de uma sociedade que tenha como
objetivos fundamentais:
1. Ampliar a autonomia da liberdade individual.
2. Mitigar as desigualdades de oportunidades.
3. Para atendê-las, utilizar um Estado forte,
constitucionalmente controlado e capaz de garantir a coordenação das
atividades econômicas através de mercados bem regulados.
Certamente, isso
não é a “civilização”, mas este é o ponto. A história dos últimos dois
séculos e meio revela que os países que se mostraram capazes de
instituir o sufrágio universal que empodera o cidadão comum e tiveram a
inteligência de instituir uma política econômica que incorpora os
ensinamentos acumulados pela economia, progrediram e avançaram no nível
de renda, na inclusão social, no aumento da igualdade de oportunidades.
Não são muito mais do que duas dezenas, todos eles
democracias desde a Segunda Guerra Mundial e com uma relação respeitosa
entre o Estado e o setor privado. Com exceção dos Estados Unidos, que
têm um bipartidarismo consolidado, possuem uma espécie de
parlamentarismo em que o regime eleitoral garante uma maioria estável
para dar segurança à administração e oferece mecanismos que garantem a
solução, sem movimentos dramáticos, para a perda de protagonismo do
governo. O bom seria simplesmente imitá-los.
No Brasil, hoje há uns primeiros sinais de que o governo
está recuperando o seu protagonismo e talvez estejamos nos aproximando
de uma mudança de expectativas. O fundamental, neste momento, não é o
regime eleitoral, mas encurtar o prazo das incertezas para acelerar a
retomada.
Fonte: CartaCapital
Por Delfim Netto
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