TAXAR MAIS OS RICOS NÃO É ESSENCIAL
PARA REDUZIR DESIGUALDADE HOJE
O combate à desigualdade social e à pobreza nos
últimos vinte anos foi marcado pela melhoria dos gastos públicos, mas,
no mesmo período, se avançou muito pouco na construção de um sistema
tributário mais justo, afirma Ricardo Paes de Barros, um dos
idealizadores do programa Bolsa Família e atual secretário de Ações
Estratégicas do governo federal.
Ou seja, o país continua taxando proporcionalmente mais a população de menor renda do que a parcela mais rica.
Apesar de reconhecer que seria importante mudar essa realidade, Paes de
Barros diz que é possível continuar diminuindo a concentração de renda
mesmo sem um sistema tributário mais distributivo.
Em entrevista
à BBC Brasil, ele afirma que "ninguém estaria contra fazer mais" pela
redução da desigualdade, mas ressalta que é difícil politicamente
realizar uma reforma tributária de grande porte no país.
O uso
dos tributos como ferramenta de distribuição de renda ganhou destaque
mundial com o sucesso do livro O Capital no Século 21, do francês Thomas
Piketty, que revela o avanço recente da concentração de renda em vários
países e propõe a elevação dos impostos sobre os mais ricos.
Apesar de reconhecer que a queda da desigualdade perdeu fôlego
recentemente no país, Paes de Barros, que é referência no assunto, diz
que no médio prazo a tendência ainda é de redução da concentração de
renda, principalmente por causa do aumento da escolaridade da população.
"Para os próximos cinco anos, eu não vejo porque temos que seguir essa
receita (de taxar mais os ricos) para continuar reduzindo a
desigualdade", afirmou ele.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil - O francês Thomas Piketty diz que há aumento da concentração de renda sempre que o rendimento do capital (imóveis, empresas, aplicações financeiras) é maior que o crescimento da economia como um todo. Considerando que o PIB brasileiro tem crescido mais lentamente, isso pode estar acontecendo no Brasil?
Ricardo Paes
de Barros: O livro do Piketty é certamente fantástico para um problema
central nos países ricos. O Brasil vive outro momento, nossas
preocupações internas são um pouco diferentes. Os países ricos veem uma
desigualdade crescente, a gente vê uma desigualdade declinante. Ele está
preocupado com a distribuição funcional da renda entre capital e
trabalho, e a gente está ainda preocupado com questão mais básicas como a
desigualdade de renda entre os trabalhadores. Por que negros e brancos
ganham diferente? Por que mulheres e homens ganham diferente? Qual o
impacto do salário mínimo mais alto? Qual a consequência da
informalidade?
A minha percepção é que a participação do
trabalho na renda ainda está subindo no Brasil. A gente está numa
perspectiva temporal diferente. Pode ser que numa perspectiva de mais
longo prazo, a preocupação de que a renda vai se concentrar
dramaticamente na mão de quem tem o capital seja central para todo o
mundo que optou por um desenvolvimento capitalista. Mas isso não parece
ser o grande desafio para o Brasil nos próximos cinco, dez anos.
Qual é o desafio?
O grande desafio parece ser como eu educo melhor a minha força de
trabalho. No Brasil, o que está definindo a desigualdade é o retorno ao
capital humano (remuneração paga de acordo com a qualificação do
trabalhador). Todos os estudos mostram uma queda grande no retorno ao
capital humano e isso que está reduzindo a desigualdade de renda no
Brasil.
Acho que se fizer um plebiscito no Brasil todo mundo vai
ser a favor do que o Piketty está propondo (uma taxa global sobre a
riqueza e impostos maiores sobre os mais ricos nacionalmente), que é uma
maneira de distribuir a renda do capital para os trabalhadores. Mas
para os próximos cinco anos, eu não vejo porque temos que seguir essa
receita para continuar reduzindo a desigualdade no Brasil.
Mas é sabido que no Brasil os pobres pagam proporcionalmente mais impostos que os ricos. Uma mudança no sistema tributário não aceleraria a queda da desigualdade?
Certamente, ninguém estaria contra fazer mais.
Evidentemente que, na medida em que o rico está pagando
proporcionalmente menos imposto que o pobre, isso está aumentando a
desigualdade. Mas o problema maior do Brasil não é tanto o nível da
carga tributária, mas arrumar a carga tributaria.
Parece não haver essa discussão dentro do governo, mesmo sendo um governo que tem a bandeira da redução da desigualdade.
Você tem "n" maneiras de reduzir a desigualdade, mas se você quiser
reduzir a desigualdade via uma espécie de transferência que passe pelo
governo, você vai ter que taxar as pessoas mais ricas e gastar com
pessoas mais pobres. Acho que o governo tem, nos últimos 20 anos, uma
política toda preocupada com gastar bem, no sentido de gastar com quem
mais precisa. Você pode identificar em várias políticas um viés
pró-pobre.
Todo mundo gostaria de fazer uma reforma tributária e
ter um sistema não só mais redistributivo, mas também mais racional.
Mas essa agenda não parece estar caminhando.
Eu tenho trabalhado
muito mais em como discutir o gasto e saber se ele está sendo bem
gasto. Não importa quem pagou - se você não gastar com aqueles que mais
precisam, você não vai reduzir desigualdade. Certamente a gente precisa
fazer o outro lado da história - cobrar de quem tem mais condição de
pagar e de uma maneira mais racional. Talvez aí a gente tenha tido muito
menos avanço nos últimos dez, vinte anos.
Por que não se avançou?
Do jeito que está (o sistema tributário) é irracional. Não atende ao
interesse de ninguém - nem de trabalhadores, nem de empresários, nem do
governo. A questão é que qualquer mexida não é neutra: alguns setores da
economia vão ganhar e outros vão perder. Dificilmente você vai
conseguir ter um consenso.
Acho que todos os países que tentaram
fazer uma reforma tributária da magnitude que o Brasil precisa,
encontraram dramática dificuldade. Então, não é questão de se eu quero
ou não. É mais uma questão de ciência política.
O senhor disse que no Brasil o que preocupa mais hoje é a desigualdade de renda entre os trabalhadores, mas não há bons dados sobre os ganhos com capital físico e financeiro nas pesquisas domiciliares do IBGE. Dados da Receita Federal - que hoje não estão disponíveis publicamente - não poderiam mostrar melhor um outro lado dessa desigualdade?
Certamente os
dados da Receita Federal vão ser super úteis. Acho que o que a Receita
deve estar debatendo é exatamente em como preservar a privacidade das
pessoas (ao divulgar informações do Imposto de Renda).
Vários países já divulgam esses dados.
Eu sou plenamente a favor desse dado estar disponível. Nem em todo meu
tempo no Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a gente
conseguiu ter acesso a esses dados. Deve ter uma maneira (de divulgar
preservando o sigilo fiscal), e talvez a Receita deva colocar isso na
sua lista de prioridades.
Isso seria importante para entender melhor a dinâmica da desigualdade e criar melhores políticas públicas?
Sem dúvida. Ainda mais se formos partir para políticas sérias de
colocar impostos sobre fortunas, sobre riquezas, e não só na
transmissão, na herança, mas de forma continuada, você vai precisar
desses dados. E as pesquisas domiciliares não captam esse topo de 1%
(mais rico da população). Todo mundo sabe disso. Então, em todo o lugar
do mundo, essa informação vem da Receita.
E esse 1% é uma parte
significativa do PIB brasileiro. Então, você precisa saber isso. Tem que
saber com a Receita porque é tão difícil obter esses dados no Brasil.
Isso não está disponível nem dentro do governo.
Alguns economistas dizem que a queda da desigualdade está perdendo força no Brasil. Há risco desse movimento de queda dos últimos anos ser estancado ou até revertido?
De 2011 para 2012, você tem uma redução na
queda da desigualdade como tradicionalmente medida pelo índice de Gini,
mas você não tem uma redução na queda na pobreza. De onde vem esse
milagre? O ponto é o seguinte: nos anos anteriores, a renda dos mais
ricos tinha aumentado muito pouco. Então, o que aconteceu é que no
último ano (com dados disponíveis) a renda dos ricos subiu acima da
média.
Então, você continuou tendo a renda do extremamente pobre
crescendo muito, a do pobre crescendo muito, mas menos que a do
extremamente pobre, a da classe média crescendo muito, mas abaixo da do
pobre. Só que tradicionalmente você tinha o rico crescendo menos do que
todo mundo.
Eu não estou vendo nenhuma reversão por enquanto.
Mesmo porque as razões para a queda da desigualdade são muito fortes e
continuam operando.
Quais são essas causas? Por que no Brasil a desigualdade cai, enquanto sobe em outros países?
O que o Piketty está falando é verdade. A distribuição de renda é
consequência de uma distribuição de riqueza (material, física,
financeira) e de capital humano (qualificação). Então, dependendo de
como está distribuído o seu capital físico/financeiro e seu capital
humano, você vai ter mais ou menos desigualdade. O que ele coloca com
clareza é que não depende apenas de quanto você tem desses capitais,
depende também da taxa de retorno (rentabilidade e remuneração).
A gente fala muito em Bolsa Família, mas na verdade a principal razão
para a queda na desigualdade nos últimos dez anos é que nós ficamos
menos desiguais em temos de capital humano. Ou seja, lá em 2002, 2003, a
desigualdade de educação no Brasil começa a cair e o retorno da
educação (o diferencial entre os salários dos mais e menos qualificados)
despenca.
Então, o que acontece - o capital humano no Brasil
passa a ficar melhor distribuído e, mais do que isso, o preço desse
capital humano começa a despencar. E quase metade da queda de
desigualdade do Brasil vem disso.
A remuneração dos
trabalhadores brasileiros de baixíssima escolaridade tem crescido
gigantescamente, enquanto a dos trabalhadores de alta qualificação tem
crescido muito pouco. Isso está acontecendo porque eu estou aumentando a
oferta de trabalhadores qualificados, mas - como não há um grande
avanço tecnológico no país - a demanda por eles não está aumentando
tanto assim. E estou tendo cada vez menos trabalhadores pouco
qualificados, mas a demanda por eles continua alta porque tem uma série
de tarefas na economia que precisa ser realizada por trabalhadores não
qualificados.
Então, se eu estou diminuindo a desigualdade de
educação na população, estou combatendo a desigualdade racial,
combatendo a desigualdade por gênero, formalizando a economia,
integrando espacialmente os mercados de trabalho no Brasil, eu estou
mais ou menos cercando a desigualdade por todos os lado. Eu não estou
vendo por onde que ela vai escapar.
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