BRASIL, O ELO PERDIDO
O
ano de 2014 está perdido para a indústria, anunciou a Fiesp em abril,
oito meses antes do fim do período, aparentemente sem surpreender
ninguém. O índice de confiança dos empresários do setor medido pela FGV
caiu para menos de 100 pontos, o mesmo nível atingido na grande
depressão mundial de 2009.
Dificuldades (e avanços) acumularam-se
nos últimos anos, mas as principais agruras do setor vêm de décadas
atrás. Estudos recentes apontam uma das consequências da crise crônica
da indústria: o Brasil distanciou-se dos padrões internacionais e hoje,
exceto no caso de algumas empresas, é um elo partido das grandes cadeias
de fornecimento globais, também chamadas de cadeias produtivas ou de
valor. A situação é preocupante, mas o País tem condições de resolvê-la,
asseguram as análises.
Uma cadeia de fornecimento global é o
conjunto de empresas de diferentes países envolvidos nas diversas etapas
de produção de um bem ou serviço, da produção ao marketing e à
distribuição. O Ford Escort produzido em 1981 na Europa com peças de
várias procedências é considerado o primeiro carro mundial fabricado
nesse sistema. O iPhone e o iPad são exemplos recentes de utilização da
mesma lógica de suprimento.
Ficar fora dessas redes mundiais de
suprimento equivale a apartar-se do mundo industrial e econômico
contemporâneo, porque elas “baratearam enormemente os custos e
aumentaram a eficiência dos sistemas da produção manufatureira”, explica
o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial. Mas
“participar das cadeias globais é para quem pode, não para quem quer”,
diz Mario Bernardini, diretor de competitividade da Associação
Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos, a entidade
responsável pela mobilização, há um mês, de 21 associações empresariais
para pressionar o governo federal por medidas de apoio à indústria de
transformação. As reivindicações abrangem
câmbio, juros, carga tributária, concorrência de produtos importados,
desoneração de investimentos, indexação de preços, custo de energia e
infraestrutura.
O conjunto de problemas considerados
sistêmicos expressos na pauta encaminhada pela Abimaq explica em parte a
inserção reduzida da indústria local nas cadeias globais e o baixo
valor agregado nas transações do País com o mundo. A Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico e a Organização Mundial do
Comércio consideram o Brasil uma das economias com menor valor
adicionado de itens importados nas suas exportações, da ordem de 10%.
Mas a sua contribuição em valor acrescentado às exportações de outros
países é a segunda maior entre as economias em desenvolvimento,
principalmente por conta das vendas externas de insumos e de
matérias-primas. O seu lugar é mais o de um fornecedor de insumos para
empresas de outras origens adicionarem valor às suas cadeias produtivas
do que um exportador de produtos com maior valor adicionado. Empresas
multinacionais buscam o País atraídas pelo mercado interno ou pela
exploração de recursos naturais, mas não o veem como um local para
agregar valor às cadeias globais às quais estão conectadas, concluem
OCDE e OMC.
A elevada concentração no topo das
cadeias de valor globais restringe o espaço de inserção dos países em
desenvolvimento, mostra um levantamento feito por Peter Nolan, da
Universidade de Cambridge, um dos principais estudiosos de cadeias
produtivas e consultor oficial do governo da China (leia a tabela).
Três empresas, em média, controlam quase 70% dos mercados mundiais em
31 setores e subsetores. São as integradoras das respectivas cadeias de
valor global, quase todas com sedes nos Estados Unidos, na Europa e no
Japão. Há apenas uma integradora brasileira, a Embraer, que reparte com a
canadense Bombardier 75% do mercado mundial de aeronaves comerciais de
20 a 90 assentos.
O problema da baixa inserção da indústria
brasileira ficou mais nítido com o impulso dado pela globalização às
grandes cadeias produtivas mundiais. O setor foi menos ator e mais
plateia desse movimento ocorrido entre 1980 e 2008. “A globalização é um
fenômeno das economias asiáticas, europeias e americanas. Não chegou
por aqui. Nós não fomos incluídos”, diz Júlio Gomes de Almeida,
professor da Unicamp e ex-secretário de Política Econômica do Ministério
da Fazenda.
A participação
reduzida do Brasil tem a ver com a política econômica dos anos 1970 e a
crise da dívida externa nos anos 1980, responsável por um choque de 15
anos na economia. “Antes do Plano Real, a situação grave do balanço de
pagamentos e a ameaça da hiperinflação afastaram o País das estratégias
de migração e reorganização da grande empresa transnacional”, diz Luiz
Gonzaga Belluzzo, diretor da Facamp Faculdades de Campinas e consultor
de CartaCapital. A partir do plano, controlou-se a inflação, mas
“a valorização do real, além de reanimar a vulnerabilidade externa,
desfavoreceu a participação brasileira nas cadeias produtivas globais,
sobretudo nos setores em que as transformações estruturais e
tecnológicas ocorriam com mais intensidade”.
O movimento de globalização e a
estruturação das cadeias de valor globais abalaram também concepções
enraizadas a respeito da evolução provável das economias nacionais e das
empresas. “Ao contrário da crença dos economistas da corrente de
pensamento dominante, o chamado mainstream, de que abrir as
economias em desenvolvimento proporcionaria às empresas locais
oportunidades para seguir o caminho daquelas dos países de alta renda,
as três décadas de globalização testemunharam um grau sem precedentes de
consolidação internacional e concentração industrial”, dizem Peter
Nolan e Jin Zhang, pesquisadora de Cambridge, no estudo Competição Global pós Crise Financeira.
A trajetória da Embraer contrasta com a
da maior parte do setor industrial. A empresa iniciou a articulação de
educação, manufatura e pesquisa há 45 anos, com apoio do governo,
através do Instituto Tecnológico de Aeronáutica. Um desenvolvimento
anterior, portanto, às políticas liberalizantes dos anos 1980.
Com as transformações financeiras e organizacionais
e as novas formas de concorrência surgidas a partir dessa década, as
grandes empresas dos países desenvolvidos reconfiguraram o ambiente
internacional. O crescente comércio entre as indústrias e principalmente
o suprimento mundial, ou global sourcing, tiveram um papel
decisivo nas estratégias de internacionalização das cadeias de
fornecedores beneficiadoras, a partir da década de 1990, das economias
asiáticas, em especial da chinesa. A maior parte do suprimento da
Boeing, uma das integradoras da cadeia global de produção de aeronaves
de grande porte, provêm de empresas do Japão, Coréia do Sul, Taiwan e
China. A situação da Airbus, concorrente da Boeing, da Bombardier e da
Embraer é semelhante.
“A realidade do setor aeronáutico, em
âmbito mundial, exige produtos no estado da arte da tecnologia para
manter as empresas competitivas e geradoras de empregos. Poucos
fornecedores em todo o mundo estão aptos a prover muitos dos componentes
e peças com as especificações necessárias para tais produtos, o que faz
com que as cadeias sejam globalizadas”, diz Nelson Salgado,
vice-presidente de relações institucionais e sustentabilidade da
Embraer. A empresa auxilia o desenvolvimento dos seus fornecedores
nacionais para atendimento dos padrões de excelência e competitividade
exigidos para inserção na cadeia global e aumento do índice de
nacionalização dos seus produtos.
As cadeias globais
de valor “tornaram-se uma força central impulsionadora de mudanças
estruturais em muitas economias modernas”, afirma a Confederação
Nacional da Indústria em estudo coordenado por Timothy Sturgeon, do
Instituto de Tecnologia de Massachusetts, e Gary Gereffi, da
Universidade de Duke. Historicamente, o Brasil conta com uma base de
tecnologia nacional mais sólida que a China ou o México. Não desenvolveu
indústrias plenamente competitivas, mas a substituição de importações
no passado criou bolsões de excelência que podem, com base em uma
combinação correta de políticas, desempenhar papéis importantes nas
cadeias globais de valor daqui para a frente. Cabe ao Brasil resolver os
problemas crônicos da sua indústria, coordenar as políticas de governo
já existentes e procurar as empresas estrangeiras bem situadas nas
cadeias, dizem os pesquisadores.
“Temos uma grande base instalada de
empresas transnacionais. A maioria delas agrega muito valor, com
fábricas e centros de desenvolvimento locais”, diz o economista Antonio
Corrêa de Lacerda, professor da PUC-SP. Boa parte é dirigida por
executivos brasileiros, ou estrangeiros com relação estreita com o País. “Deveríamos negociar com esses dirigentes um maior compromisso com
produção e inovação locais, exportações, empregos e tudo que possa
acelerar e qualificar nossa inserção externa”, sugere Lacerda.
Para Gomes de Almeida, a solução dos
problemas sistêmicos da economia permitiria explorar melhor setores em
que o Brasil tem muita expertise, como as indústrias automobilística, de
bens de capital, mecânica, de equipamentos elétricos, eletrônica, de
alimentos. O economista defende “uma política especial para envolver as
multinacionais que fracionam sua produção no mundo sem incluir o Brasil,
a não ser como fornecedor básico e mercado final, apesar de estarem
instaladas no País”.
A cadeia produtiva do petróleo
exemplifica avanços e possibilidades no caso brasileiro. Há um
investimento significativo da Petrobras em exploração e refino do
petróleo. É importante aproveitar a capacidade industrial de convertê-lo
no País em produtos químicos e petroquímicos hoje, em grande parte,
importados, disse Carlos Fadigas, presidente da Braskem, no Fórum Brasil
promovido em março por CartaCapital. Nas etapas anteriores à
produção de petróleo, inclui-se a construção de plataformas de
prospecção, responsável pelo renascimento do setor de estaleiros no
Brasil.
Falta ao Brasil “entender a nova
geografia da produção”, diz Renato da Fonseca, gerente de pesquisa e
competitividade da CNI. Com o avanço do comércio e da tecnologia, não se
concebe mais produzir tudo em um país. O conteúdo local dos produtos é
importante, mas deve-se defini-lo com cuidado, “para acertar a dosagem”.
Antes, no entanto, é preciso proporcionar à indústria boas condições
locais de operação.
Fonte: CartaCapital
Por Carlos Drummond
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